#01 Monção Equatorial: ilha de Langkawi, Abril de 2017
"Ora bem, atenção, observemos com cuidado" - alertava Vladimir, falando sozinho, debruçado sob um conjunto de palmeiras baixas na zona norte da praia, apontando para um monte de folhas mortas aninhadas sobre uma camada de musgo, - "se usar este elástico, ele vem" - esticando o elástico entre o indicador e o polegar da mão esquerda, Vladimir pousava levemente o chamariz sobre as folhas mortas, ia tocando levemente o elástico esticado com o anelar, como se dedilhase as cordas de uma guitarra, estas vibrações repercurtiam-se mecanicamente, de forma inaudível, estimulando os orgãos tactéis do escorpião que vagarosamente se aproximava mantendo o aguilhão em riste e as quelíceras frontais em posição defensiva. No dorso do escorpião, um saco de ovos esbranquiçados, uma fêmea em pré-oclusão, basicamente na fase mais agressiva do ciclo de vida destes artrópodes que sendo primos afastados das aranhas, pertecem também ao género dos aracnídeos. "... ah, ai vem, é uma fêmea, tem ovos, espera, é melhor nao insistir, deixe-mo-la em paz ..."- ao retirar o elástico, soergue-se, e tenta recuperar a posicao vertical, no entanto, sem querer tropeça no musgo e em desiquilíbrio apoia a mão direita a 5cm do escorpião que sem hesitação salta, cravando as quelíceras no pulso da mão direita, e projectando o agulhão venenoso em alavanca, disferindo três sacadas consecutivas, fugindo de seguida sob as folhas de palmeira - "Ahhh, Santo Deus!" grita Vladimir, cambaleando deitado agora sobre o musgo, "ela ferrou-me, e várias vezes, sorte maldita!". O pânico não se instala imediatamente, mas a situação configurava-se deveras complicada, senão, recapitulemos: sozinho, a 12Km da sua tenda, alguns 60Km do centro médico mais próximo (aqui, por centro médico, digamos, cabana tropical identificada com uma cruz vermelha) sob o efeito simultâneo de alguns cogumelos selvagens liofilizados, 2 charutos de liamba Javanesa, e três ferradas de escorpiao fêmea, e isto, ainda antes do pequeno-almoço. O resto do dia anunciava-se indigesto, no mínimo, talvez mesmo o seu último.
Na mochila que carregava às costas, Vladimir nunca trazia antídotos, mas apenas algumas revistas, uma câmara digital, bolachas, sumos e uma bússola. Era tudo o que precisava para uma manhâ no mangal de Andaman que visitava com regularidade. Agora, deitado nas folhas de palmeira com 3 furos no antebraço deparava-se com uma urgência; como aracnologista amador, sabia que nestes mangais havia alguma probabilidade de encontrar artrópodes venenosos, mas a sua experiência em múltiplas visitas de campo reduziu o seu estado de alerta, acomodou-se, e agora tinha a certeza de que pagava pelo excesso de confianca. O veneno espalhava-se rapidamente, e sentia o ardor a subir pelas veias, sem a possibilidade de efectuar um derrame táctico, a sua única alternativa era uma purga literal, exangue, tinha de encontrar um antídoto natural e tinha muito pouco tempo antes de perder a capacidade motora. Deteve-se por um momento, e por detrás de um tronco de palmeira por onde o escorpião tinha fugido, Vladimir, via agora distintamente um Dragão de Komodo, cerca de metro e meio de comprimento, afastando delicadamente as folhas e o musgo com as patas dianteiras enquanto prescrutava o ambiente com a sua lingua bífida. O dragão tinha detectado o escorpião e é neste momento que Vladimir se lembra que este é dos poucos predadores naturais de escorpiões, e que por isso, é naturalmente imune ao seu aguilhão - e aqui por epifania, surgiu uma solução, "ha que provocar o dragão de modo a ser mordido e lacerado", esta era uma forma de se imunizar contra o veneno que começava agora a alastrar pelo peito e pelas pernas. Neste momento, Vladimir salta para cima do dragão, disferindo joalhadas com as últimas réstias de energia ainda no seu organismo. O dragão responde como pretendido, sacode a sua enorme cauda, estica os membros inferiores e com um golpe de mandíbulas, abocanha os testículos de Vladimir, arrancando de forma particularmente dolorosa um deles e troteando de seguida em fuga. Vladimir jaz prostrado nas folhas de palmeira, olhando para o céu cinzento e electrificado pela Monção, em agonia pela dilaceração química do antídoto natural contido na saliva do dragão reagindo com o veneno do escorpião nos seus orgãos internos, nas suas pernas, braços e peito. Dos 5 testículos herdados de seu Pai, por um acidente genético particularmente singular, a Vladimir, agora, restavam apenas 4, mas sabia que iria sobreviver, e nas costas do escorpião que registou na sua memória fotográfica, tinha encontrado o padrão que tentava descortinar - a distribuição em estrelas na página 29 do manuscripto de Voynich, uma das pistas para a descodificação do Arquivo Salgácio que pesquisava no Mar de Adaman.