#04 Bizâncio-uno, Abril de 1271
Após a conversa com o Mestre, Salgácio sente uma certa apreensão. Com efeito, se a ideia de assumir uma identidade secreta e partir numa nova aventura lhe parecia interessante, o facto de cumprir esta missão sob um véu de secretismo absoluto e em estrita contradição com princípios doutrinários e morais de católico devoto, colocavam-no num impasse. A identidade sugerida para esta missao era a de "botanista" e haviam poucas ocupações pseudo-científicas tão marginalmente heréticas uma vez que esta actividade tinha algumas implicações no cabalismo alquimista professado por druídas ermitas à margem da ortodoxia vigente. Apenas o conforto outorgado pela benção do seu Mestre em estrito cumprimento com o seu voto de obediência, lhe permitiam assim viver um embuste. Se por um lado Salgácio receava sucumbir a tentações não previstas nem premeditadas, por outro, o compromisso canónico de obediencia sob a égide do qual ele se lançava nesta aventura, permitir-lhe-ia disfrutar duma certa latitude comportamental e quem sabe emocional. A botânica não era uma disciplina recente e tinha uma relação muito próxima com a alquimia que era liminarmente proibida na Época Medieval, sendo mesmo punida com autos-de-fé. A margem era muito ténue e havia uma certa intersecção em determinadas áreas, Salgácio teria de navegar com destreza.
O turbilhão de ideias e contradições vividos nesta fase ribombava na sua mente, e de forma ainda mais pungente, um dos últimos conselhos do Mestre proferidos no pátio do Mosteiro enquanto sorvia uma sopa de alho-francês com beldroegas: "Salgacio di Coglionazo, não te esquecas nunca das sábias palavras de Anaclítoris de Lesbos, lançando um alerta aos seus discípulos na escadaria da akademia platónica e após uma longa sessão de âlgebra: se achais que a vida é pesada, devíeis tentar erguer a minha sogra do andarilho!"
Assim, antes de embarcar na sua saga, Salgácio passa os meses de Inverno de 1270 a estudar Botânica, nomeadamante o tratado de "Physica" da monja Beneditinia Hildergarda de Bingen (circa 1170), onde apesar do titulo, a autora se concentra na descrição morfológica de centenas de plantas e respectivo uso medicinal, incluindo um capítulo dedicado exclusivamente ao depuramento e filtragem de cevadas para cerveja; bem como o famosíssimo "De Vegetabilis et Plantis" do frade Dominicano Alberto o Grande (circa 1200) no qual o estudo de morfogénese e taxonomia são de especial importância; e, por último, a compilação de medicamentos e receitas do teólogo Andaluz Ibn al-Baitar (circa 1250), entitulada "Kitab al-Jami fi al-Adwiya al-Mufrada" no qual este descreve cerca de 1400 plantas medicinais e respectivos efeitos farmacológicos. É nesta fase preliminar que Salgácio aprofunda o seu conhecimento acerca do método cientifico como depurador epistemológico, e das inúmeras disciplinas afins como a taxonomia, bio-estatistica, morfologia, com as suas especificidades, contextos, teorias e métodos experimentais. Em preparação para a sua missão, era importante estudar estas àreas com seriedade.
Salgácio deixa crescer uma barba hirsuta de modo a mergulhar mais profundamente na sua nova identidade. Note, caro/a leitor/a que até à data, nesta narrativa ainda não tivemos a oportunidade de descrever fisicamente este nosso protagonista medieval, bem como o seu co-protagonista comtemporâneo. Notando que se tratam ambos de personagens autobiográficos, as suas matizes são de facto semelhantes apesar dos séculos que os separam. Há, no entanto, diferenças e idiossincracias que urge apontar, oportunamente. Por agora identifiquemos apenas as suas semelhanças: estatura mediana, cabelos castanhos e barba grisalha, complexão bronezada, ombros largos, dentes bem tratados, ligeiro tropegar da omoplata direita e um gaguejar subtil apenas audivel em aramaico ou georgiano; mãos bem tratadas mas calosas por excesso de prática de alaúde e masturbação compulsiva na juventude, ausência de fungos nos dedos dos pés e pernas bem torneadas. Acidentes e peripécias em tenra idade terão a ambos causado uma pronunicada hipertrofia nasal bem como causado aversão a espaços confinados, sendo assim detentores dum magnânime nariz proporcional a uma claustrofobia galopante que os impede de medrar em espacos exíguos. Traumas e psicopatologias inexistentes, ou, atá às datas, não identificados. Perante isto, digamos apenas que Salgácio não era totalmente invisível perante o contigente feminino no convento anexo, tendo por várias vezes sido alvo de tentativas de sedução por parte de uma ou outra irmâ menos devota. Vladimir não é muito diferente, mas de modo a evitar assincronias na narrativa deixemos a sua fisionima para mais tarde.
Descrevamos sumariamente o trajecto seguido pelo nosso protagonista no início do seu périplo: partindo de Siena em direcção a Veneza, Salgácio alista-se numa caravana de beduínos transportando sedas e especiarias ao dorso de dromedários, esta é interpelada por contrabandistas nos Apeninos e Salgácio inspirado nas lições de "Physica" de Hildergarda consegue dispersar os bandidos criando uma cortina de fumo com base numa bateria de narguilés fumigando cannabis magrebino sob pressão, implementando principios hidrodinâmicos de Arquimedes e Basiltefodes; a caravana esacapa em direcção a Ragusa (Dubrovnik moderno) onde Salgácio aborda um navio zarpando no Mar Adriático em direcção a Izmir, aí, Salgácio impressiona o comandante ao prever uma tempestade usando um astrolábio e, mais tarde, surpreende também os marinheiros com a sua habilidade em destilar àgua salgada, purificando-a de acordo com as teorias de Ibn al-Batar - não só a diferença entre astrologia e astronomia é agora patente quâo o é também a importancia da alquimia; prosseguindo a sua aventura, Salgácio junta-se a uma coluna militar de mercenários Mistrophoroi de origem persa, esta coluna cai numa silada de Pashmergas exilados atacando furtivamente o acampamento após o pequeno-almoço; neste episódio, Salgácio recorre a uma mistura alquímica de enxofre e neroli baseada nos seus estudos das receitas de Ibn al-Batar, provocando uma torrente de diarreias explosivas nos seus inimigos; finalmente, às portas de Constatinopla, Salgácio é tomado de surpresa pelo cerco à cidade imposto pelo imperador nicénico Vatatzes desde 1260. As portas da cidade encontram-se protegidas por guaridas em vigilância permanente, e Salgácio só consegue romper o cerco atravessando o Bósforo a nado na noite escura.
As peripécias de Salgácio durante este percurso, não passam despercebidas na Corte Bizantina de Constatinopla onde o seu pseudónimo de botanista começa a fazer parte das vulgatas e dos rumores. É nesse período, que Salgácio é convidado a participar numa cerimónia oficial oferecida por Miguel VIII, Imperador Palailogos, onde espera vir a poder tomar conhecimento do paradeiro de Teobaldo Visconti, Charles d’Anjou e Josephus Eduardius, o objectivo da sua missão.
Apesar da sua convicção inabalável nos principios doutrinários da Santa Igreja que tinha abraçado incondicionalmente desde tenra idade, em Salgácio, certas questões existenciais profundas começavam agora a emergir de forma fracturante. O facto de se encontrar com vida nesta fase do seu périplo devia-se aos escritos apócrifos e quase heréticos dos cientistas referidos. Salgácio não questiona a sua fé, esta é íntima, dogmática, mas a fenomenologia retratada pelas recentes teorias da matéria, da física, da quimica, da botânica, oferecem uma nova visão do universo e da vida que apesar de colocar ainda mais dúvidas do que certezas, tem um potencial explicativo infinito. Para um curioso, isto era irresistível.