#1 Monção Equatorial: Ilha de Langkawi, 23 de Abril de 2017

“Ora bem, atenção, observemos com cuidado” — alertava Vladimir, falando sozinho, debruçado sob um conjunto de palmeiras baixas na zona norte da praia, apontando para um monte de folhas mortas aninhadas sobre uma camada de musgo.

“Se usar este elástico, ele vem…”

Vladimir pousava levemente o chamariz sobre as folhas mortas, dedilhando um elástico entre o indicador e o polegar da mão esquerda com o anelar como se tocasse as cordas de uma guitarra.

Essas vibrações repercutiam-se mecanicamente, de forma inaudível, estimulando os órgãos tácteis do escorpião, que se aproximava vagarosamente, mantendo o aguilhão em riste e as quelíceras frontais em posição defensiva.

“…ah, aí vem. É uma fêmea. Tem ovos. Espera... é melhor não insistir… deixemo-la em paz…”

Ao retirar o elástico, soergue-se lentamente, tentando recuperar a posição vertical. Contudo, tropeça no musgo e, em desequilíbrio, apoia a mão direita a escassos cinco centímetros do escorpião.

Sem hesitação, o animal salta: crava as quelíceras no pulso da mão direita e projecta o aguilhão venenoso em alavanca, desferindo três sacadas consecutivas, fugindo de seguida sob as folhas de palmeira.

“Ahhh, Santo Deus!” — grita Vladimir, cambaleando, agora estendido sobre o musgo. “Ela ferrou-me. E várias vezes! Sorte maldita!”

O pânico não se instala imediatamente, mas a situação configura-se deveras complicada. Senão recapitulemos:

Sozinho, a 12 km da sua tenda e e 60 km do centro médico mais próximo - sendo “centro médico” uma cabana tropical com cruz vermelha pintada a pincel, sob o efeito simultâneo de alguns cogumelos selvagens liofilizados, dois charutos de liamba javanesa, e três ferradas de escorpião fêmea em pré-oclusão.

E isto ainda antes do pequeno-almoço.

O resto do dia anunciava-se indigesto, no mínimo - talvez mesmo o seu último.

Na mochila que carregava às costas, Vladimir nunca trazia antídotos. Apenas algumas revistas, uma câmara digital, bolachas, sumos e uma bússola. Era tudo o que precisava para uma manhã no mangal de Andaman, que visitava com regularidade.

Agora, deitado nas folhas de palmeira com três furos no antebraço, deparava-se com uma urgência inesperada.

Como aracnologista amador, sabia que nestes mangais havia alguma probabilidade de encontrar artrópodes venenosos, mas a sua experiência em múltiplas visitas de campo reduzira o seu estado de alerta. Acomodara-se. E agora, pagava o preço pelo excesso de confiança.

O veneno espalhava-se rapidamente. Sentia o ardor subir pelas veias. Sem hipótese de efectuar um derrame táctico, a sua única alternativa era uma purga literal - exangue.

Tinha de encontrar um antídoto natural, e tinha muito pouco tempo antes de perder a capacidade motora. Deteve-se por um momento. E por detrás de um tronco de palmeira  por onde o escorpião tinha fugido, Vladimir via agora distintamente um dragão-de-Komodo. Cerca de metro e meio de comprimento, o réptil afastava delicadamente as folhas e o musgo com as patas dianteiras, prescrutando o ambiente com a sua língua bífida.

O dragão tinha detectado o escorpião e é neste momento que Vladimir se lembra: o dragão-de-Komodo é um dos raríssimos predadores naturais de escorpiões, e por isso, naturalmente imune ao seu aguilhão. E por epifania visceral surgiu a solução:

“Há que provocar o dragão. Ser mordido e lacerado. É essa a única forma de me imunizar contra o veneno que sinto alastrar pelo peito e nas pernas.”

Sem hesitar, Vladimir salta para cima do dragão, disferindo joelhadas com as últimas réstias de energia que ainda pulsavam no seu organismo. O dragão reage como pretendido: sacode a enorme cauda, estica os membros inferiores, e com um golpe fulminante de mandíbulas, abocanha os testículos de Vladimir, arrancando um deles de forma particularmente dolorosa troteando em fuga, triunfante.

Vladimir jaz prostrado nas folhas de palmeira, olhando para o céu cinzento, electrificado pela monção, em agonia, sentindo a dilaceração química do antídoto natural, contido na saliva do dragão, reagindo com o veneno do escorpião - nos seus órgãos internos, nas pernas, nos braços, no peito.

Dos cinco testículos herdados de seu pai, por um acidente genético particularmente singular, agora, restavam-lhe apenas quatro.

Contudo sabia agora que iria sobreviver e no dorso do escorpião que registara na sua memória fotográfica tinha encontrado o padrão que tanto procurava - a distribuição em estrelas do Manuscrito de Voynich!- uma das pistas cruciais para a descodificação do Arquivo Salgácio, que investigava há anos nas margens esquecidas do Mar de Andaman.

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