#2 Novenas: Siena, 23 de Novembro de 1270

“Não, não uses muitos adjectivos,” dizia o Mestre enquanto descascava uma cebola que comia crua, deambulando pelo átrio do mosteiro no intervalo da novena. “Guarda-os para as coisas realmente importantes. Por exemplo, este ‘realmente’ não era necessário. Mas não sigas conselhos de ninguém, muito menos dum velho acabado como eu.”

Salgácio ia na décima terceira revisão, e o exercício tornara-se cada vez mais penoso. Não usar adjectivos? E os advérbios, podia incluí-los? Sempre gostara dos “mentes” — igualmente, assiduamente, responsavelmente - e o papiro estava cravejado destes ditirambos. Mas não usar adjectivos? Além de descaracterizar o texto, parecia simplesmente impossível.

Inventara um sinal grafológico específico para evitar alongar o manuscrito: substituíra os “mentes” por “mnt” numa primeira abordagem por volta da sexta revisão, tendo-os agora trocado por um ‘m’ com quatro bossas, seguido de um ‘t’ traçado pequenino. Teria sido bem mais económico receber essa sugestão algumas revisões atrás — grosnava, mas já estava habituado às retóricas do Mestre. As suas respostas incluíam sempre a própria negação e isso, apesar de logicamente incorrecto, era reconfortante. (E lá está — mais um adjectivo, seguido de um advérbio...)

Advirto o leitor de que era Salgácio o alvo das atenções do Mestre, e não o vosso narrador.

Mas economizar nos adjectivos parecia ser uma sugestão ainda mais radical do que a substituição de ذ por س aquando da tradução de Al-Kharzimi, exigida há tempos durante um exercício incunabilístico.

Al-Kharzimi fora, até à data, o maior desafio de Salgácio como copista e tradutor. E era também por esse feito que podia agora usufruir de uma sabática com o Mestre. As cópias dos clássicos greco-romanos, via traduções árabes, eram um trabalho triplamente reconhecido nas altas esferas sefarditas. Estes projectos exigiam fluência em múltiplos dialectos e respectivas variantes, e poucos tinham paciência ou inclinação para tal.

O Mestre publicara, em tempos, o seu Catálogo de Variantes Linguísticas - e Salgácio era um dos seus alunos predilectos. Não apenas pela teimosia ou curiosidade, mas pela intransigência apaixonada. Salgácio desafiava o Mestre sempre que possível, incondicionalmente, de forma provocadora por vezes - e isso era, de facto, reconfortante. O Mestre tinha alguém em quem depositar o seu legado e o paternalismo ostensivo com que tratava Salgácio era um sinal de confiança absoluta.

Mas a nova missão que agora lhe confiava apresentava contornos inusitados - secretivos, transbordando as meras questões metafísicas e linguísticas que eram a norma do seu trabalho. Havia algo de radicalmente diferente neste projecto. E Salgácio sentia apreensão. Pela primeira vez, via também receio profundo nos olhos do seu Mestre.

“Há algo que temos de discutir também,” dizia o Mestre, acrescentando: “Consta que Teobaldo Visconti saiu do Cáucaso Georgiano há dias e, com o Concílio em desacordo após a morte do Sumo Pontífice, eu suspeito que a sua viagem possa estar relacionada com o Colégio dos Cardeais. Ele navegou do porto de Batumi numa caravela comercial, acompanhado de Charles d’Anjou e Josephus Eduardius.”

Rematando com uma advertência e um pedido:

“Espero que os possas interceptar. Segundo consta, navegam no Mar Negro em direcção a Constantinopla. É fulcral que saibas o que se passa e possas codificar essa informação. Inventa uma personagem, uma razão, uma identidade - por exemplo, um cientista em périplo europeu. Nada melhor para esconder a identidade de um cónego do que adoptar a identidade de um dos seus próprios detractores.”

Até à data, em raríssimas ocasiões o Sumo Pontífice fora eleito in absentia - algo que o Colégio dos Cardeais evitava escrupulosamente, especialmente após a desastrosa eleição de Clemente IV no conclave de 1264–1265. No entanto, o desacordo canónico actual apresentava contornos semelhantes e, durante o prolongado conclave de 1268–1271 - o período em que decorre esta narrativa - os cardeais hesitavam em eleger um Papa nestas condições.

O nome de Teobaldo Visconti surgira em discussões, ainda que nem sequer fosse cardeal — um gesto inusitado. O conclave, sob a pressão política de Filipe III de França, decide restringir o périplo cardinalício a sete elementos: dois cardeais da facção dos Orsini: Giovanni Gaetano e Giacomo Savelli; três gibelinos: Simone Paltineri, Ottaviano Ubaldini e Guy de Castella; o cardeal Riccardo Annibaldi, enquanto que os Angevinos eram completamente preteridos.

Teobaldo Visconti, no entanto, era unanimemente referido como figura de consenso - apesar de não pertencer ao regio Cardinalis.

Os motivos desta nomeação eram tão obscuros quanto suspeitos, mas o Mestre não hesitava em atribuí-los à influência de Eduardius e de Charles d’Anjou. Estes exerciam, segundo ele, uma influência directa sobre Teobaldo e uma influência indirecta sobre o conclave, difícil de quantificar e de esclarecer.

Era este o objectivo da intersecção de Salgácio. De escrivão intelectual a espião canónico com disfarce científico - essa era a sua nova missão. Uma missão que abraçava com receio, mas também com curiosidade.

Viver obcecado com aliterações grafológicas e semânticas estilísticas era interessante — em doses moderadas. As possibilidades infinitas oferecidas pelas páginas dos incunábulos eram, sem dúvida, fascinantes. Mas Salgácio sentia visceralmente que a vida não se desenrolava apenas em páginas de texto.

“Vive-se vivendo,” como dizia Mohamed ibn Musa Al-Kharzimi, que reinventara a álgebra, a aritmética e a geometria, em convalescença, durante pausas médicas após combates nos quais se voluntariara como soldado-filósofo - “E porque não deixar umas notas de rodapé avulsas para a posteridade, caso tal valha a pena?”, concluía Kharzimi.

Era neste espírito que Salgácio abraçava a sua nova missão - e uma sabática merecida da sabática oficial que tinha iniciado com o Mestre.

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