#4 Chegada a Constantinopla: Odisseia, 2 de Maio de 1271

Após a conversa com o Mestre, Salgácio sentia uma certa apreensão. Com efeito, se a ideia de assumir uma identidade secreta e partir numa nova aventura lhe parecia interessante, o facto de cumprir esta missão sob um véu de secretismo absoluto e em estrita contradição com os princípios doutrinários e morais de um católico devoto, colocava-o num impasse profundo.

A identidade sugerida para esta missão era a de “botanista” — e havia poucas ocupações pseudo-científicas tão marginalmente heréticas, uma vez que esta actividade mantinha implicações no cabalismo alquimista professado por druidas ermitas, sempre à margem da ortodoxia vigente.

Apenas o conforto outorgado pela bênção do seu Mestre, em estrito cumprimento do voto de obediência, lhe permitia viver este embuste com serenidade teológica.

Se, por um lado, Salgácio temia sucumbir a tentações não previstas nem premeditadas, por outro, o compromisso canónico de obediência, sob cuja égide se lançava nesta aventura, permitia-lhe usufruir de uma certa latitude comportamental — e, quem sabe, emocional.

A Botânica não era uma disciplina recente. Tinha uma relação muito próxima com a Alquimia, que era liminarmente proibida na Época Medieval, sendo mesmo punida com autos-de-fé.

A margem era ténue. Havia uma intersecção delicada em determinados domínios — e Salgácio teria de navegar com destreza. O turbilhão de ideias e contradições que vivia nesta fase ribombava na sua mente. De forma ainda mais pungente, ecoava-lhe um dos últimos conselhos do Mestre, proferidos no pátio do mosteiro enquanto sorvia uma sopa de alho-francês com beldroegas:

Salgácio di Coglionazo, não te esqueças nunca das sábias palavras de Anaclítoris de Lesbos, lançando um alerta aos seus discípulos na escadaria da Akademia platónica e após uma longa sessão de álgebra: “Se achais que a vida é pesada, devíeis tentar erguer a minha sogra do andarilho!’”

Assim, antes de embarcar na sua saga, Salgácio passa os meses de Inverno de 1270 a estudar Botânica com diligência.

Consulta, entre outros:

  • o tratado Physica da monja beneditina Hildegarda de Bingen (circa 1170), onde — apesar do título — a autora se concentra na descrição morfológica de centenas de plantas e seu uso medicinal, incluindo um capítulo dedicado exclusivamente ao depuramento e filtragem de cevadas para cerveja;

  • o famosíssimo De Vegetabilibus et Plantis do frade dominicano Alberto, o Grande (circa 1200), no qual o estudo da morfogénese e da taxonomia assume especial importância; e,

  • por último, a compilação de medicamentos e receitas do teólogo andaluz Ibn al-Baitar (circa 1250), intitulada Kitab al-Jami fi al-Adwiya al-Mufrada, na qual são descritas cerca de 1400 plantas medicinais e respectivos efeitos farmacológicos.

É nesta fase preliminar que Salgácio aprofunda o seu conhecimento sobre o método científico como depurador epistemológico, bem como sobre disciplinas afins, tais como Taxonomia, Bioestatística e Morfologia com as suas especificidades, contextos, teorias e métodos experimentais.

Em preparação para a sua missão, era imperativo estudar estas áreas com seriedade — pois só assim poderia navegar os interstícios do saber e da fé, sem se afogar na heresia nem naufragar na ignorância.

Salgácio deixa crescer uma barba hirsuta, como forma de mergulhar mais profundamente na sua nova identidade.

Note, caro/a leitor/a, que até à data — nesta narrativa labiríntica — ainda não tivemos a oportunidade de descrever fisicamente este nosso protagonista medieval, bem como o seu co-protagonista contemporâneo.

Sendo ambos personagens autobiográficos, as suas matizes são, de facto, semelhantes, apesar dos séculos que os separam. Há, no entanto, diferenças e idiossincrasias que urge apontar oportunamente.

Por agora, identifiquemos apenas as suas semelhanças: estatura mediana; cabelos castanhos e barba grisalha; complexão bronzeada; ombros largos; dentes bem tratados; ligeiro tropegar da omoplata direita; gaguejar subtil apenas audível em aramaico ou georgiano; mãos bem cuidadas, mas calosas por excesso de prática de alaúde na juventude; ausência de fungos nos dedos dos pés; pernas bem torneadas. Acidentes e peripécias em tenra idade terão a ambos causado uma pronunciada hipertrofia nasal e uma aversão crónica a espaços confinados, sendo, portanto, detentores dum magnânime nariz proporcional a uma claustrofobia galopante, que os impede de medrar em espaços exíguos. Traumas e psicopatologias? Inexistentes — ou, até às datas, não identificados.

Perante isto, digamos apenas que Salgácio não era totalmente invisível perante o contingente feminino no convento anexo, tendo por várias vezes sido alvo de tentativas de sedução por parte de uma ou outra irmã menos devota.

Vladimir não é muito diferente — mas, de modo a evitar assincronias na narrativa, deixemos a sua fisionomia para mais tarde.

Descrevamos sumariamente o trajecto seguido por Salgácio no início do seu périplo: partindo de Siena em direcção a Veneza, Salgácio alista-se numa caravana de beduínos, transportando sedas e especiarias ao dorso de dromedários.

Esta caravana é interpelada por contrabandistas nos Apeninos, mas Salgácio, inspirado pelas lições da Physica de Hildegarda de Bingen, consegue dispersar os bandidos criando uma cortina de fumo com base numa bateria de narguilés, fumigando cannabis magrebina sob pressão implementando princípios hidrodinâmicos de Arquimedes e Basiltefodes.

A caravana escapa então em direcção a Ragusa (Dubrovnik moderna), onde Salgácio aborda um navio zarpando no Mar Adriático em direcção a Izmir.

Aí, Salgácio impressiona o comandante ao prever uma tempestade com o uso de um astrolábio, e mais tarde surpreende os marinheiros com a sua habilidade em destilar água salgada, purificando-a segundo as teorias de Ibn al-Baitar. Não só a diferença entre astrologia e astronomia se torna agora patente, como também a importância transversal da alquimia.

Prosseguindo a sua aventura, Salgácio junta-se a uma coluna militar de mercenários Mistrophoroi de origem persa. A coluna, no entanto, cai numa cilada de Pashmergas exilados, que atacam furtivamente o acampamento após o pequeno-almoço.

Neste episódio, Salgácio recorre a uma mistura alquímica de enxofre e neroli, baseada nos seus estudos dos compêndios de Ibn al-Baitar, provocando uma torrente de diarreias explosivas nos seus inimigos, desequilibrando as hostes invasoras com uma eficácia ímpar.

Finalmente, às portas de Constantinopla, Salgácio é tomado de surpresa pelo cerco à cidade, imposto pelo imperador nicénico João III Vatatzes, desde o ano de 1260. As portas da cidade encontram-se protegidas por guaridas em vigilância permanente, e Salgácio só consegue romper o cerco atravessando o Bósforo a nado, na calada da noite, sem mapas nem testemunhas.

O facto de ainda estar vivo, nesta fase do seu périplo, devia-se, em grande medida, aos escritos apócrifos — e quase heréticos — dos cientistas que estudara. Salgácio não questionava a sua fé — esta era íntima, dogmática, inegociável — mas a fenomenologia retratada pelas recentes teorias da matéria, da física, da química e da botânica oferecia-lhe uma nova visão do universo e da vida, uma visão que, apesar de trazer mais dúvidas do que certezas, conduzia a um potencial explicativo virtualmente infinito. Para um curioso isto era irresistivel.

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