#5 Margarida de Vichy: Istambul, 27 de Maio de 2017

 

De regresso ao condomínio que Vladimir alugava em Singapura, Ludmila adverte com ternura:

Querido Volodya, por favor, tem cuidado nessa viagem. Ainda estás muito fraquinho, e sabes que, se te sentires diminuído ou fragilizado, terás de tomar os meus ensopados de durião.

Ludmila recomenda também o seguinte:

Pedi às minhas primas gémeas, Ileana e Iryna, para se encontrarem contigo no Mercado de Especiarias, sexta-feira ao cair da tarde. Elas levam um broche azul na lapela do casaco, sob um vestido negro com capote, calçando botas de cano alto verdes para que as possas identificar, elas pertencem a uma Sociedade secreta que te poderá auxiliar.

Rematando com uma promessa:

Sabes... nunca te deixarei sozinho, querido Vova. Mas, por agora, terei de ficar aqui.

Vladimir sentia conforto quando Ludmila o tratava por “Volodya” ou “Vova” — diminutivos bielorrussos usados com carinho. No entanto, o redobrado emprego destes termos afectivos numa mesma frase sinalizava algo mais: desconforto, preocupação. Ludmila não estava completamente segura. Sentia que o estado débil de saúde de Vladimir poderia piorar significativamente, caso as cautelas e precauções não fossem priorizadas.

Havia, além disso, algo que a inquietava em silêncio — uma relutância em partilhar com Vladimir que tinha engravidado após tantas visitas domiciliárias. Não queria preocupá-lo, não queria agravar ainda mais o seu estado emocional — frágil, disperso, por vezes quase translúcido.

E assim, encerra a conversa com uma última advertência:

Querido… sei que terás saudades minhas — das massagens e dos ensopados. Por isso, deixei na tua pasta o meu bloco de receitas, para que, quando precisares, te possas regalar com alguns dos nossos cozinhados favoritos. Tem cuidado, querido Volodya…

Vladimir parte para Istambul de madrugada, num voo de longo curso de uma companhia aérea do Médio Oriente. Num estado auto-hipnótico de semi-consciência, com uma dor latejante nos rins, ia escrivinhando no seu bloco de notas durante a viagem:

“Pois bem, o tetragrama contém 4×7 símbolos iconográficos — de acordo com as ilustrações de Voynich, do Georgiano arcaico para o Árabe Medieval, estas correspondem às quatro cidades com sete colinas: Roma, Jerusalém, Constantinopla e Lisboa.
Quatro estruturas homunculares sob a égide de um objecto celeste.
E destas, temos então 28 colinas — correspondendo às 28 consoantes do alfabeto árabe!”

Vladimir efectua um exercício de livre associação, conectando cada letra do alfabeto árabe a uma das colinas de Istambul, usando a iconografia do Manuscripto de Voynich e um guia turístico como referência.

A seguinte lista surge, assim, algures sobrevoando o Oceano Índico:

Primeira Colina (Santa Sofia) → د (Dal): denota grandeza e sabedoria
Segunda Colina (Grande Bazar) → ذ (Dhal): representa prosperidade
Terceira Colina (Mesquita Süleymaniye) → ر (Ra): significa reverência
Quarta Colina (Mesquita Fatih) → ز (Zay): simboliza herança
Quinta Colina (Mesquita de Selim I) → س (Sin): representa pureza
Sexta Colina (Mesquita Mihrimah Sultan) → ش (Shin): implica beleza
Sétima Colina (Mesquita Koca Mustafa Pasha) → ص (Sad): denota santidade, alinhando-se ao local sagrado próximo ao Chifre de Ouro

O mesmo poderia ser aplicado a Roma, Jerusalém e Lisboa, cidades sobejamente conhecidas pelas suas “sete colinas”. Esta hipótese cripto-analógica agradava a Vladimir. Os frutos do seu longo e continuado estudo — ao redor das diversas alternativas de desencriptação — apresentavam agora sérios sinais de plausibilidade.

Com efeito, as revelações em Langkawi originavam esta nova hipótese, baseada numa interpretação linguística e geográfica da informação codificada no manuscrito. Os efeitos narcolépticos da privação de sono, acumulados ao seu debilitado estado de saúde ainda em recuperação, são difíceis de descrever.

Tendo partido no dia anterior de Singapura e passado a noite numa escala em Dubai, Vladimir somava agora um jet-lag considerável às suas maleitas. No entanto, as mezinhas preparadas pela sua querida Ludmila surtiam efeito: os metabolitos hiperactivos das tinturas de trametes versicolor (turkey tail) e Hericium erinaceus (lion’s mane) presentes no ensopado de duriano fortaleciam o seu sistema imunitário.

Se bem que a sua debilidade física fosse evidente, a sagacidade intelectual parecia despertar — com inúmeras ideias, teorias e conjecturas explodindo em criatividade após a primeira tentativa de descodificação.

À chegada ao Aeroporto Atatürk, Vladimir apanha um táxi e dirige-se directamente ao Mercado de Especiarias, no centro da cidade. Ao atravessar as portas do aeroporto, Vladimir é imediatamente engolido por uma sinfonia de vozes, malas de rodas histéricas e motoristas de táxi — numa cacofonia infernal e ensurdecedora. Um dos motoristas, exibindo um hirsuto bigode e camisa aberta até ao umbigo, aproxima-se com um entusiasmo desproporcional ao serviço que oferecia:

“Spice Market? My friend! Come, come!” — exclama, adivinhando o destino de Vladimir.

Este, sem saber muito bem como — ainda confuso pela privação de sono, medicamentos e jet-lag — dá por si sentado no banco de trás de um táxi que exalava um leve aroma a tabaco, couro gasto, shisha e açafrão.

O condutor, de nome impronunciável, conduzia como quem joga xadrez em andamento. Cada mudança de faixa era um xeque, cada ultrapassagem um gambito; as buzinas funcionavam como linguagem — um dialecto próprio, feito de códigos e insultos criativos.

“You laik Turkish tea?” — pergunta, enquanto o táxi mergulha entre dois autocarros — “Very strong! Not laik Turkish man. With raki... boom!”

Do lado de fora, os bairros desfilavam como cenários de teatro montados à pressa: ruas estreitas com roupa pendurada entre janelas, cafés onde velhos discutiam política — ou talvez o resultado de um jogo qualquer — e mesquitas de cúpulas douradas, vigiando o mundo como avós silenciosas. Ao fundo, o Bósforo, imponente, reluzia — testemunha intemporal de verdades incontornáveis. No rádio, música turca de outrora — algo entre o lamento e a celebração. O motorista batia no volante como se ensaiasse para um concerto em Ankara.

A dada altura, com ar cúmplice, olha Vladimir pelo retrovisor e diz:

“Istanbul... beautiful, yes? But crazy. Laike wife.”

Chegando ao Bazar das Especiarias, o motorista acena, ainda a rir-se, e grita:

“Next time, shisha and kebab. Very gud!” — E parte, buzinando, rumo à próxima alma desavisada.

À chegada, no centro do mercado, Vladimir assiste a uma comoção surreal. Dezenas de homens, em fila, transportando rosas, perfumes, caixas de bombons, frutas, especiarias, vestidos de seda, tapetes persas, entre outros objectos, discutem calorosamente sobre a ordem a manter.

Há cenas de pugilato, insultos, empurrões — num clima eufórico, de transe quase hipnótico.

No centro da praça, onde termina essa fila, duas mulheres: brancas como a neve, altas, idênticas, envergando um broche azul na lapela do casaco, sob um vestido negro com capote, calçando botas de cano alto verdes. Vladimir compra um cestinho de pistáchios e coloca-se, respeitosamente, na última posição da fila, aderindo ao protocolo informal de “atendimento”.

Tratava-se da já habitual fila espontânea de adoração, gerada no mercado após a chegada das gémeas — algo a que elas se tinham habituado desde o início da viuvez. Onde quer que fossem, onde quer que se mostrassem publicamente, os homens entravam num estado de transe, comportando-se desta forma ritualizada.

Após recusarem algumas propostas pré-nupciais, descontos no Bazar, transfusões de sangue, e várias entradas para ópera, teatro e restaurantes de luxo, as gémeas conseguem finalmente ceder algum tempo a Vladimir, agora chegado ao início da fila.

Vladimir apresenta-se usando o código pré-definido por Ludmila. Por motivos de confidencialidade, não o poderemos descrever aqui — digamos apenas que este código secreto envolvia um aperto de mão peculiar e duas palavras codificadas, bem ao estilo dum cumprimento maçónico mas não tão paneleiro.

As gémeas, visivelmente agradecidas, enchem as suas mochilas com as oferendas — pistáchios, perfumes, sedas e outras galanterias — e abandonam a praça, guiando Vladimir num passeio labiríntico por vielas, ruelas, calçadas, portas, portões e escadarias.

Chegam, por fim, a uma loja de especiarias com cestas de durioes à porta.

Vladimir, Ileana e Iryna entram e seguem por um corredor escuro, atravessam um átrio esconso e descem umas escadas em caracol, que os levam até uma cave — um espaço exíguo e mal iluminado, onde se deparam com duas personagens, sentadas frente a frente, diante de uma mesa de Oui-Ja, murmurando discretamente… em francês.

Vladimir é imediatamente interpelado:

Excusez-moi, s’il vous plaît, mais qui êtes-vous ?

Respondendo prontamente:

Je suis le copain de Ludmila, j’y arrive de Singapour !

Vladimir ! Bienvenue — puis-je te tutoyer ? Eu sou a Margarida. Estávamos à tua espera. — responde uma delas, com um sorriso cúmplice.

E, voltando-se para a amiga:

Esmeralda, o que achas? Achas que é mesmo ele? Pode ser ele?

Como haveis percebido até agora, o vosso narrador é parco e económico nas descrições fisionómicas — algo que se justifica por pudor e decoro. Digamos que descrições físicas são, por vezes, intrusivas e atentam contra a dignidade pessoal, real ou fictícia, dos personagens que por aqui têm tropeçado.

No entanto, excepções confirmam a regra, e neste ponto justifica-se um parágrafo.

Nas últimas linhas, entraram quatro novas donzelas, todas igualmente importantes no decurso desta narrativa, e sobre as quais se impõe tecer algumas considerações. Até porque, não terão passado inteiramente despercebidas ao escrutínio do nosso protagonista, que, apesar da nobreza dos sentimentos nutridos pela sua enfermeira bielorrussa, sentia uma certa curiosidade pelas suas novas camaradas.

Senão vejamos:

  • Margarida Sophie-Antoinette de Montmorency de Polignac-Ségur de la Roche-sur-Yon de Villeneuve-Lembron de Chateaubriand Beauharnais de Brissac de Saint-Évremond de la Vallière et Vichy tem cabelos ruivos e olhos azuis — uma bretã de gema, baixinha, de excelente constituição óssea, com pernas e braços bem torneados, perfil atlético. Um certo prognatismo maxilar concede-lhe uma autoridade natural, e revelar-se-á, sem grande surpresa, uma das líderes incontestada da Sociedade secreta Tri-Testikularis.

    Um primeiro divórcio com um pasteleiro filet-mignon terá degenerado em exílio forçado de Versailles rumo ao sul, onde estabelece um pequeno antiquário em Vichy. É nesta fase que descobre um conjunto de escritos de magia medieval, os quais estuda avidamente, tornando-se especialista reconhecida nas matérias obscuras do grimório europeu. Margarida de Vichy divorcia-se pela segunda vez — desta feita dum sobrinho-neto de Kropotkin, com quem vivera sob anonimato discreto, e com o qual tem um filho chamado Aurélien. Mais tarde, emigra para Istambul, levando consigo uma mala com duzentos amuletos e uma edição raríssima de Trithemius, esperando uma vida menos tumultuosa.

    Segundo consta no Census Francês, o nome longo e invulgar de Margarida surge por diversas vezes nos registos oficiais desde o século IX, tendo alguns conspiracionistas alegado tratar-se dum fenómeno sobrenatural e assim acusado várias “Margaridas de Vichy” de bruxaria ao longo dos tempos. Curiosamente, todos os detractores desta invulgar persistência onomástica cometeram suicídios estranhos durante os respectivos processos acusatórios. O último, um jurisprudente galego de nome Gastón, terá mesmo cortado a própria cabeça três vezes consecutivas com uma lâmina de barbear, enquanto redigia a sua nota de despedida.

  • Ileana Csiupamapitsciota e Iryna Pakova são gémeas homozigóticas, loiras, de estatura elevada e de uma beleza marmórea que lhes confere uma aura de estátuas gregas — indistinguíveis até nos maneirismos. Falam com um forte sotaque russo, sendo o único pormenor identificativo o facto de Ileana iniciar sempre as frases que ambas proferem, ficando Iryna encarregue da respectiva conclusão — completam-se no diálogo, em sincronismo absoluto, como um par de metrônomos biológicos em perfeita consonância fonética.

    Segundo consta, cresceram em Vladivostok e emigraram para Moscovo ainda jovens, onde trabalharam numa loja de porcelanas junto ao Largo Patriarch. Ali, eram admiradas pelos locais e terão recebido inúmeros convites para posar na Galeria Tretyakov, durante as aulas de doutoramento dos alunos do curso de Escultura. Enviuvaram alguns anos mais tarde — no mesmo dia. Os seus maridos, ambos guarda-marinha em Sevastopol, faleceram durante o infame Atentado Potemkin. Ileana e Iryna, de apelido paterno Fazmi-Umbrofsky, passaram a usar o nome dos maridos em sinal de luto contínuo, tendo abraçado a Sociedade secreta Tri-Testikularis e enveredado por uma vida ascética, cumprindo religiosamente os votos de obediência e abstinência exigidos no âmbito das suas funções como sub-Komissárias.

    Há um registo breve — e estranhamente picaresco — pela pena do historiador georgiano Anatoly Karalhshivli, aquando de uma passagem pelo Cáucaso onde relata um encontro num piquenique em Tbilissi, sob o efeito duma aquavit distilada a 90% testemunhando o seu próprio colapso neurológico perante a presença das gémeas:

"Senti o meu cérebro explodir ao ser introduzido às gémeas - perdi momentaneamente a noção do tempo, senti-me como Vronsky num vortéx meta-estético e transcendental, um xerox-kaput com 2 Afrodites de beleza imortal sombreando uma Anna Karenina de fealdade bossal em comparação"

  • Por ultimo, a Bruxa Esmeralda, uma morena mística, de estatura mediana, pele bronzeada, membros delicados e ancas bem torneadas, lábios finos e maçãs rosadas no rosto, detentora de uns olhos verdes-esmeralda — de uma beleza incomum — que se presume ser a origem do seu nome. Cintilavam como gemas preciosas, vivos com mil segredos sussurrados por árvores ancestrais e ventos selvagens. Cada olhar de Esmeralda era como uma tempestade verdejante — vívido, intoxicante e impossível de desviar — puxando os seus interlocutores para dentro de um labirinto de mistério e magia. Aqueles olhos não apenas viam: comandavam, encantavam e, sobretudo, enfeitiçavam. Esmeralda possuía também uma capacidade invulgar para o monólogo e a conjectura. Segundo fontes fidedignas, teria em tempos ressuscitado um defunto usando apenas o poder da sua argumentação, convencendo-o de que não estava verdadeiramente morto, obrigando-o de seguida a preencher um boletim de voto da cooperativa socialista mutual em Ashgabat. Segundo essas mesmas fontes, o referido ex-defunto decidiu morrer novamente após o episódio, alegando não possuir capacidade argumentativa suficiente para contradizer Esmeralda, o que catapultou os seus poderes paranormais a níveis de popularidade incomuns no Cáucaso nordestino do Turquemenistão.

Vladimir sentia-se à vontade com mulheres — talvez por ter crescido com quatro irmãs. Desde jovem habituara-se à sua companhia, aos exageros, às perguntas, às histórias e aos gestos. Nunca tivera qualquer dificuldade de comunicação nem conflito nas suas relações mais íntimas. Não alegava mestria em psicologia feminina — tinha a noção de que nem um Comité Nobel de distintos cientistas conseguiria descortinar as tempestades caóticas que deflagram ocasionalmente na cabeça de uma mulher. Tinha, no entanto, a convicção serena de que as mulheres eram, em geral, mais perspicazes — e potencialmente mais perigosas — do que a maioria dos homens.

Sabia também que as mulheres superinteligentes e extraordinariamente belas manifestavam, ocasionalmente, algo de suicidário. E eram, certamente, loucas. No entanto, eram precisamente essas que lhe roubavam o sono — e os últimos vestígios de sanidade.

A familiaridade que cultivara no convívio com as irmãs e suas amigas acarretava, desde cedo, um certo fardo: o facto de não se deixar intimidar pela presença de mulheres belas e inteligentes retirava-lhes o factor surpresa, relegando Vladimir, invariavelmente, para o campo das amizades.

Salvo as raríssimas excepções que Vladimir abraçara com devoção monogâmica, a maioria destas mulheres ignorava-o olimpicamente. E, neste grupo improvável a que agora acidentalmente pertencia, suspeitava, com amarga lucidez, não haveria excepções a esta triste regra.

Vladimir é interpelado novamente por Margarida:

Et alors, raconte-nous, comment va Ludmila ?

Esmeralda nada diz. O efeito hipnótico dos seus olhos verdes deixa Vladimir consternado — como uma ressonância magnética ao nível do subconsciente, semelhante ao TAC que fizera dias antes, ainda em convalescença. Fogem-lhe agora as palavras, limita-se a abreviar:

Sim, sim... Ludmila está bem, obrigado.

Acrescentando:

Ela sugeriu um encontro aqui na loja, sobre uma... Sociedade...?

Margarida ri-se:

Caaaaalma, ehhh là, c’est pas comme ça. Il faudra l’audition!

Audição? — pergunta Vladimir, perplexo.

Bien sûr, Vladimir. Julgas que entras na minha loja com um par de jarras soviéticas, interrompes o bruxedo da minha Esmeralda e ainda pedes satisfações? Quem faz perguntas aqui somos nós, percebes? Agora… baixa as calças, por favor. Temos de confirmar.

Vladimir recua, encostado agora à parede, num canto da cave.

Ehh lá, calma, calma. Baixar as calças? Mas o que é isto? Confirmar o quê?

Margarida começa a perder a paciência. O tom da sua voz sobe. As gémeas entreolham-se, mas nada dizem. A bruxa não pestaneja — continua a efectuar um raio-X psicanalítico, escrutinando o nosso protagonista com os seus olhos de esmeralda.

Insiste Margarida de Vichy:

Ouve… porque é que achas que a nossa Sociedade secreta se chama Tri-Testikularis? Para matemático, pareces um pouco limitado. Baixa lá as ceroulas. Queremos ver.

Mas ver o quê?! Estão todos loucos?!

Apenas as suas mulheres e amantes teriam tido o exclusivo. Vladimir sentia-se enganado, vilipendiado na sua dignidade, absorto com tamanha iniquidade.

Que ultraje!

Agora, homem feito — investigador, irmão, pai de adultos, tio, professor, sobrinho, neto — agora, nesta fase da sua vida, exigiam-lhe uma apalpação abdominal para averiguar competências?

Sinceramente!

Que os recém-eleitos cardeais fossem sujeitos a tal teste desde o embuste da Papa-mulher Joana Anglicanus de 855, ainda vá. Mas Vladimir não era Sumo Pontífice. Era um modesto matemático.

Jamais permitiria a uma estranha que apalpasse o seu saco escrotal para contar o número de testículos.

Jamais!

Margarida de Vichy, sentindo a apreensão de Vladimir, estende rapidamente o braço direito em direcção ao seu ventre e exclama com solenidade devastadora:

Allez-y, montrez-nous tes couillons!

Ora — neste preciso momento, uma fractura espaciotemporal interrompe abruptamente esta narrativa. Como um véu negro e gelado, uma cortina de fumo fulminante congela o tempo e o espaço onde se desenrola este episódio.

O braço de Margarida fica suspenso no ar. Os olhos de Esmeralda piscam uma única vez — num gesto granítico - o corpo de Vladimir, imóvel, com a mão prestes a ajustar as ceroulas, é congelado no tempo-espaço.

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