#7 Fractura temporal: Istambul & Constantinopla, 27 de Maio de 2017 & 1271
Salgácio nunca se tinha aproximado intimamente duma mulher. Tinha, obviamente, lido descrições pré-clássicas da beleza feminina em vários incunábulos espalhados pela biblioteca; conhecia bem o cânone greco-romano, as estórias de Helena de Troia e do efeito que esta causava nos homens — mas relegava esses exageros para a esfera mitológica.
Durante os seus estudos, aprofundara também algumas questões anatómicas e fisiológicas acerca do sexo oposto; no entanto, esse conhecimento, adquirido teoricamente, era puramente escolástico. A imaginação de Salgácio teria, por várias ocasiões, divergido em especulações de teor libidinal — mas tais pensamentos eram quase sempre eliminados conscientemente, com alguma vergonha própria.
Tinha encontrado diversas desculpas para justificar esses desvios, refugiando-se em actos litúrgicos ou mesmo em técnicas medicinais.
Grande parte do seu estudo dos manuais de Hildegarda de Bingen incidia sobre fisioterapia, frenologia, reflexologia e proto-pilates, e estes manuais eram sobejamente bem ilustrados — com pormenores que provocavam algum nervosismo e a ocasional entumescência em Salgácio, pois, apesar de tudo, ele era um homem, e como todos os homens, tinha necessidades. Explosões hormonais.
Mas todas essas manifestações eram astutamente neutralizadas pela sua teimosia irreverente — em especial ao acordar — relegando os seus sonhos menos ortodoxos para duas ou três contrições, auto-flagelando os seus desvios com mais estudo e, claro, com as confissões.
Pois este Salgácio — reservado, tímido, virginal — surgia agora, de relâmpago, junto a quatro belas mulheres, uma das quais apalpava de forma vigorosa as suas partes pudendas, avaliando o conteúdo do saco escrotal e contando o respectivo número de testículos.
Era assim que Salgácio emergia do seu acidente espaciotemporal — tudo, literalmente tudo, tinha mudado num microsegundo: de três camaradas barbudos jogando xadrez com um Gato Embaixador, para quatro belas companheiras numa cave esconsa; dos jardins de Constantinopla para um mercado em Istambul; de 1271… sabe-se lá para quando.
Enfim, até o surpreendente cacho de testículos dependurados nas suas gónadas era diferente, pois onde habitualmente se aninhavam dois tímidos tomatinhos, encontrava agora quatro maduros colhões — e vestígios de um quinto, colhido pelo dragão-de-Komodo na Ilha de Langkawi.
— Meu Deus, mas como é isto possível?! — grita Salgácio, perdendo os sentidos e caindo redondo no tapete persa estendido na loja de especiarias.
Vladimir não era completamente inexperiente no campo dos psicotrópicos recreativos pois este era um dos motivos pelos quais se refugiava com frequência em Langkawi, no Sudeste Asiático, onde o consumo de narcolépticos era permitido — em especial cogumelos liofilizados, ópio desoxigenado e quejandos — que havia experimentado com regularidade, registando com curiosidade os respectivos efeitos psicadélicos.
Digamos que consumia esse tipo de raridades como diversão ocasional. No entanto, esta era, sem dúvida, a experiência mais imersiva que jamais uns narguilés de maçã-canela turca lhe tinham outorgado — era literalmente fascinante, como se tivesse encarnado um novo personagem. Noutras aventuras desta natureza, já tinha passado horas a conversar com Strumpfs, atravessado o rio Nilo a nado, pontapeando crocodilos selvagens, e reescrito os Evangelhos Apócrifos em sânscrito moderno — mas nunca, até à data, nunca tinha sentido uma experiência tão realista como esta.
Questionava-se sobre o que Ludmila teria colocado no ensopado de duriões, pois esta trip psicadélica não poderia ser causada exclusivamente pelo conteúdo dos narguilés. Vladimir, encarnando um outro personagem, em transe, partilhava uma série de tabuleiros com um grupo curioso de xadrezistas, no qual se destacava um gato negro, enorme, vestindo roupas aristocráticas.
Este olhava directamente para Vladimir, perscrutando-lhe a alma com um semblante irónico nos bigodes — digamos que aparentava ser o único interveniente nas múltiplas partidas de xadrez plenamente ciente da experiência metadimensional com que o nosso protagonista se consumia e degladiava.
O Embaixador Plenipotenciário Bulgakov olha directamente para Salgácio (agora Vladimir) e diz, numa voz sibilante, arrastando os r’s e os z’s como qualquer russófilo nato:
— Bispo para D4... é a sua vez, Lucreciano — arrastando a peça lentamente com uma das unhas super afiadas da sua pata direita.
Vladimir (agora Lucreciano), sem palavras, tentando processar a experiência trans-corporal, pensa para consigo: “Mas como é isto possível? O que será que a Ludmila usou no ensopado? Ou estamos na presença dos melhores cogumelos alucinogénios que jamais experimentei… ou há algo de profundamente errado nisto tudo, e esta é a trip mais alucinante de sempre — mas o que se passa?”
Ensimesmado, pensando para si próprio fixado no tabuleiro, e neste seu diálogo interno — dentro da sua própria cabeça — ouve a voz do Embaixador em resposta:
— Confuso? Ainda nada viste, caro Vla-di-mir!