#6 Embaixador Bulgakov: Constantinopla, 27 de Maio de 1271

1.500 metros separam a margem sul de Katellion da baía fluvial de São João de Cornibus. Durante o calmio primaveril de Abril, a temperatura deste braço afluente do Bósforo ronda os dois dígitos, mesmo durante a noite, o que permite a espíritos aventureiros tentar a travessia.

Salgácio nada vigorosamente, sentindo a hipotermia iminente, agravada pelo cansaço extremo causado pelo ritmo aeróbico das braçadas — ao qual se soma o esforço exigido pelo peso da mochila de cabedais, carregada de incunábulos botânicos, cartas avulsas, notas e estojos de caligrafia. Emerge exausto das águas do Bósforo ao amanhecer, por volta das cinco da manhã. Antes de iniciar a travessia — e durante o périplo descrito anteriormente — idealiza o seu disfarce. Constrói mentalmente um personagem de acordo com os ditames do mestre e os objectivos da sua missão. Ao botânico impostor decide outorgar o nome de Lucreciano Buonaventura, da família italo-saxónica de Cook, e é desta forma que emerge — literal e figurativamente — na sociedade bizantina, para prosseguir a sua aventura.

Após uma curta secagem junto a uma fogueira de tratamento de desperdícios no porto de São João de Cornibus, Salgácio (agora Lucreciano) decide infiltrar-se sorrateiramente pelos passeios exíguos em direcção ao mercado de especiarias, com o intuito de se apoderar de algumas vestes penduradas nos estendais — com as quais se vai vestindo.

Na primeira calçada encontra uma túnica com um brasão estampado na parte dianteira; esta é a primeira peça de indumentária que Lucreciano decide usar. Prosseguindo o seu disfarce, sobre a túnica coloca um robe de tecido pesado vermelho, com gola alta, que lhe confere um ar de autoridade. O robe é fechado no pescoço por pequenos botões de metal trabalhado, que brilham discretamente à luz do sol. As mangas da túnica, justas, terminam em punhos delicadamente bordados com fios dourados, enquanto o robe ostenta uma barra levemente adornada com pele de lebre — ou talvez de gato.

Descobre também um cinto de couro marrom-escuro com fivela ornamentada, que usa para segurar a túnica, na qual pendura uma pequena bolsa de couro.

Nas pernas, Salgácio (Lucreciano) coloca umas calças justas de lã, conhecidas como chausses, que se ajustam perfeitamente e são presas à túnica por tiras finas. Os sapatos de couro, robustos porém elegantes, têm pontas ligeiramente alongadas, seguindo a moda dos Crakows, muito apreciada entre os nobres da época.

Para completar, coloca uma capa longa de veludo preto, forrada com pele de texugo, que caía majestosamente sobre os ombros e era presa por um broche de prata com pedras preciosas.

Na cabeça, um chapéu simples, porém bem-feito, que indicava a sua nova identidade — sem ostentação exagerada, mas com a discrição própria de quem sabe que o disfarce perfeito exige equilíbrio entre humildade e detalhe.

Após a fortuita transformação sartorial, Salgácio (agora Lucreciano), exausto, tenta descortinar uma saída do labiríntico bairro de Kadıköy em direcção ao palácio. O cansaço acumulado após as inúmeras peripécias começa a fazer-se sentir de forma particularmente dolorosa, e a fome e sede que sente laceram o seu raciocínio, impelindo-o de forma quase hipnótica a seguir um rasto ténue de odores exóticos e perfumados que agora distingue nitidamente.

Salgácio segui o seu faro e dirige-se pela porta Oriental em direcção a uma praça que julga ser um novo mercado de especiarias — há-os às dezenas em Constantinopla, como igrejas em Roma ou fontanários em Lisboa. Nesta praça, inúmeros mercadores, ainda cedo, arrumam os seus expositores com sedas, especiarias, perfumes — um espectáculo de invulgar beleza que lhe provoca uma estranha sensação de nostalgia, como se já ali tivesse estado, em sonhos, delírios ou noutras aventuras.

Refugia-se numa pequena casa de chá onde, finalmente sentado e reconfortado, desfruta de um narguilé de maçã-canela acompanhado de baklavas turcas. Salgácio (agora Lucreciano) recorda-se da sugestão do Mestre, advertindo-o para ler a carta lacrada que lhe havia deixado num envelope dentro de um incunábulo de Botânica, que trazia enrolado num papiro resistente dentro da mochila com a qual tinha efectuado a travessia do Bósforo a nada de madrugada:

“Querido Salgácio,

Se estais a ler esta missiva, presumo que haveis chegado incólume a Constantinopla.
Nunca tive oportunidade de te contar o que se segue — não te quis preocupar, mas estou muito doente, e não nos veremos novamente. Esta missão é a nossa última aventura. Eu sei que não terias partido se eu te houvesse contado.

Perdoa-me, por favor, pelo que escrevi e pelo que te revelarei de seguida.

Toda a minha vida foi entregue com devoção à nossa Igreja, à nossa doutrina e aos nossos estudos. Abracei incondicionalmente a mensagem de Cristo e nunca duvidei da minha fé. No entanto, questionei-me, por vezes, sobre o amor nas suas várias manifestações — uma delas em especial: o amor paternal. Com enorme carinho te confesso agora ter sido assim que te acolhi no nosso Mosteiro — com orgulho e amor, como um Pai, como teu Pai.

Tem cautela na tua missão! Confia nos teus instintos e no teu talento. Lembra-te de mim quando te sentires aflito. Estarei sempre contigo. Mas cautela com as cevadas — pois bem sei que te deixas inebriar com facilidade nos períodos de maior concentração.

Meu querido filho.”

Após a leitura da carta do Mestre, Salgácio sacode as lágrimas do rosto e prossegue, vagarosamente, pela parte sul do mercado onde, junto a uma série de pequenos expositores de artesanato, é tomado de surpresa por um personagem em particular. Um mercador baixinho, careca, desdentado e fisicamente repugnante, grita num dialecto franco-desconhecido com as suas clientes — mulheres de várias idades que fazem fila à porta do seu expositor:

Ordre, s'il vous plaît, mes Dames, ordre, je vous en prie! — exclama, tentando organizar a fila - Avez-vous pris vos numéros d'entrée? — vai perguntando às donzelas na fila, em tom cerimonioso.

O cenário desconcertante intriga Salgácio, que se prostra de cansaço no passeio oposto, de modo a poder apreciar os eventos enquanto recupera as suas energias. Em letras garrafais, sobre a arcada de entrada, cravado em mármore, pode ler-se o letreiro: "Apothécaires d’Ange" — um farmacêutico. Interessante escolha num mercado de especiarias, onde faria, com efeito, pleno sentido existir um estabelecimento desta natureza.

Salgácio (agora Lucreciano) atravessa o passeio e coloca-se na última posição da fila, atrás de uma velhinha vestida de negro, que leva um cabaz de flores na mão. Apercebendo-se da aproximação deste estranho, o dono da loja apressa-se a sair da entrada, interpelando directamente Salgácio, num franco-turco de rudeza balzaquiana:

Êtes-vous un client? Qu'est-ce que vous cherchez ici?

Salgácio (agora Lucreciano) inventa uma desculpa, respondendo:

Mon cher, je suis ici pour acheter l’œil d’ambre gris, s’il vous plaît. Je suis botaniste et j’essaie de distiller un peu de parfum pour mes clients.

Ao que o comerciante, irado, responde:

Êtes-vous débile, ou trisomique ? Vous plaisantez ? Ici, nous ne vendons pas d’yeux — nous vendons uniquement des fragrances déjà distillées. Quelle idée ! Allez, sortez, s’il vous plaît.

Perante a interjeição desrespeitosa, Salgácio, desolado pelo frio e pelo cansaço, explode em fúria:

S’il y a un fou ici, c’est bien vous, Monsieur. Je vous laisse à vos délires, sale con !

Esta invectiva provoca uma torrente de fúria no dono da loja, que exclama:

Mais qui êtes-vous, gros débile, pour insulter le plus grand Maître parfumeur de Constantinople ? Je vous invite à un duel d’échecs à neuf heures du soir, à l’Hippodrome !

Salgácio responde à provocação, sem hesitar:

Bien sûr, j’y serai. À bientôt, gros salopard !

Furioso, ainda ofegante pela acesa discussão, Salgácio percebe que o duelo de xadrez marcado para as 21 horas estava agora lançado, e que teria de regressar a Katellion mais tarde.

Este personagem é Charles d'Anjou e, aqui, como vosso humilde narrador, permitam-me uma tangente na narrativa:

Charles Fragonard d'Anjou nasce no início do século, em Grasse, numa aldeia periférica da cidade de Mouans-Sartoux. Descendente de uma longa linhagem de perfumistas, Charles é admitido na escola talmúdica do Rabbi Galimard, onde desde jovem revela uma aptidão invulgar para a alquimia e hortofrutifloricultura — actividades essenciais na arte da destilação de perfumes. Um acidente passional na juventude resulta no afogamento do marinheiro Thomas-Baptiste Grenouille, por asfixia homoerótica nas termas romanas do Vale-du-Prépucien. Charles, principal suspeito do incidente, decide então emigrar para Constantinopla, em fuga das autoridades, onde abre um entreposto comercial num ponto fulcral da Rota da Seda — no exacto local onde agora se desenrola este incidente.

Ora, em Constantinopla, os homens disputavam as suas questiúnculas de variadíssimas formas: os duelos de espada eram comuns, mas o xadrez, originário das Índias, estava agora em voga — pela humilhação intelectual que deixava marcas profundas no ego dos perdedores.

Salgácio prossegue, caminhando pela rua Soğukçeşme Sokağı, após o incidente com Charles, até chegar à imponente Catedral de Hagia Sophia — uma construção de beleza inigualável, servindo como ponto fulcral na arquitectura de Constantinopla. Esta Catedral, erigida inicialmente durante o Império Romano do Oriente (c. 537), era um centro de oração católico, em latim, durante o século no qual se centra esta narrativa. O seu nome advém do grego sophia, que significa sabedoria, e não de "Santa Sofia", como muitos incorrectamente julgam.

Como ornamentos, os artistas bizantinos utilizavam tesselas — pequenos cubos de vidro colorido, ouro e pedras semipreciosas — criando imagens luminosas que brilhavam com a luz ambiente do vasto interior. Essas tesselas douradas eram colocadas em ângulos ligeiros, de modo a capturar e reflectir a luz solar, criando um brilho celestial e uma sensação de presença divina por todo o espaço.

Um dos mosaicos mais antigos detém o olhar de Salgácio (agora Lucreciano): um vitral enigmático narrando viagens temporais sobre um fundo de ouro radiante, entrelaçado por figuras geométricas em azul ametista — fulgurantes, místicas, como se vibrassem ao ritmo secreto de uma liturgia esquecida. O efeito é simultaneamente régio e etéreo, como se a luz ali sussurrasse o sagrado com voz de vidro.

Como o Arquidiácono Claude Frollo de Victor Hugo, Salgácio intui, com melancólica lucidez, que a revolução livresca a que consagrara toda a sua existência era, no fundo, uma forma de arquitectura: as ideias, despojadas de pedra, mármore ou vitrais, precisavam apenas de papel e pena. Estas catedrais — majestosas, sim, eternas na sua presença mineral — tornar-se-iam vazias, substituídas por pensamentos encadernados.

A morada do sagrado migrava, enfim, do templo de pedra para o templo do verbo. Mas mesmo este novo templo, tão orgulhosamente erguido em folhas e lombadas, talvez não perdurasse: quem sabe, num futuro longínquo, os próprios livros fossem também suplantados por murmúrios de silício ou meros vestígios numa nuvem de memória partilhada.

Enquanto contemplava o vitral, Salgácio (agora Lucreciano) vislumbra perifericamente um homem de pequena estatura e fartos cabelos brancos junto ao muro sul da Catedral, murmurando:

Bir, eki, üç, dört, beş, altı, yedi, sekiz, dokuz, on...

Depois, pára. E volta a proferir a contagem, olhando atentamente para a arcada.

Ao dorso deste personagem singular, uma pasta de cabedal da qual sobressaem um astrolábio, uma lupa, uma lanterna e vários cadernos de campo. O homem misterioso tem um porte aristocrático, uma face enigmática, cabelos grisalhos, dedos finos e um semblante inquisitivo.

Salgácio aproxima-se, intrigado, e decide interpelá-lo:

Exmo., por favor, permita-me perguntar-lhe algo.

O homem responde, com um ligeiro arquejar de sobrancelhas:

Com certeza, jovem. De que se trata?

— Estou perdido. Não conheço bem esta cidade e preciso de alcançar as portas do palácio. Por onde devo seguir?

O homem, com ar solene e ligeiramente ofendido, responde:

Mas por acaso achais, gentil-homem, que eu sei a resposta?

Lamento incomodá-lo... será que me pode indicar quem saiba ou possa ajudar?

O interlocutor, agora visivelmente irritado, riposta:

Escuta: fazes perguntas imbecis, interrompes os meus cálculos mentais e depois questionas a minha diligência?! Serás, por acaso, mais um desses imbecis que nunca leu um incunábulo e, mesmo assim, se permite indagar estranhos?

Salgácio-Lucreciano, cansado, exaurido, perde a paciência e permite-se uma resposta menos diplomática:

Ouça, ancião: eu já traduzi mais papiros, versículos, manuais, dicionários e clássicos apócrifos do que jamais poderá imaginar! E raramente, neste processo, me deparei com personagens tão desagradáveis e arrogantes. Bastava uma negativa — “não” — e poderíamos ter ambos poupado esforço, tempo e paciência. Tempo esse que infelizmente não possuo neste momento mas que pelo odor dos seus andrajosos robes, vos parece sobrar em demasia.

Irado, o velho explode. E, numa resposta ácida, propõe um desafio:

Mentecapto! Energúmeno! Quem julgas tu que interpelas com tanta desfaçatez?! Ainda nem sequer navegavas como sementinha nos testículos do teu cornudo pai quando já eu me dedicava às novas ciências exactas! Proponho um duelo de xadrez, de modo a esclarecer — e clarificar — este assunto. Para que aprendas. Às nove horas no Hipódromo. Que dizes, satrapista?

Salgácio responde imediatamente, sem reflectir, quase instintivamente:

Com todo o gosto, Diógenes-de-alguidar, pseudo-teorista de meio almofariz — lá estarei!

Este personagem intrigante é Josephus Eduardius, e aqui, como narrador, permitam-me uma nova tangente na narrativa:

Josephus Eduardius era um habitué nas praças de Constantinopla. Alegadamente de origem lusitana, terá emigrado ainda jovem para as estepes sub-saharianas do Sahel, onde fundou uma academia de matemática avançada para alunas de psicologia cognitiva. Não há qualquer registo da sua actividade nessa fase — apenas referências esporádicas nalguns manuais de semiótica para surdos e álgebra para coxos. Mais tarde, emigra para Constantinopla, onde se recusa terminantemente a seguir convenções sociais. Passeia-se pela cidade envergando uma lanterna, com a qual discute calorosamente com transeuntes. Essa lanterna, segundo ele, não se destinava — como no caso de Diógenes — a encontrar pessoas inteligentes, mas sim a procurar as chaves do seu alambique, alegadamente perdido em África, há 38 anos.

Josephus abraça a nova prática do hidrofobismo recusando-se a tomar duches enquanto se dedicava simultaneamente a conjecturas matemáticas, aracnologia amadora,e panpsiquismo molecular. As suas teorias faziam algum sucesso nos círculos menopáusicos do Bósforo setentrional.

Hagia Sophia foi erguida numa praça enorme, rodeada de muros como um palácio, onde jogos eram organizados como nos tempos antigos. Estes, uma vez iniciados na Catedral, por vezes continuavam no Hipódromo vizinho, construído no século III pelo Imperador Constantino, com cerca de 400 metros de comprimento e arcadas curvas ao longo de uma pista oval. O físico Seljuk Sharaf al-Zaman al-Marwazi (d. 1125), que passou por Constantinopla, relata ter visto jogos de "cães contra raposas", "chitas contra antílopes" e "leões contra búfalos", enquanto o Imperador, a Imperatriz e uma multidão de espectadores assistiam com júbilo. O viajante e filósofo judeu Benjamim de Tudela também descreve a animação do Hipódromo como: "Um local de diversão digno de faraós onde o entretenimento de circo, não se podia assistir em nenhuma outra parte do mundo — incluindo acrobacias com leões, leopardos, e ursos."

Salgácio (agora Lucreciano) aproxima-se de um jogador de xadrez no pátio do Hipódromo, sentado numa mesinha redonda sobre a qual se pode ler um letreiro: "Teocracio Vulvinni – Aluguer de Xadrez".

Interpela-o, sugerindo uma marcação para duas disputas.

Quereis reservar tabuleiros? — pergunta Vulvinni — E quem sois vós, se me permite a indiscrição?

Salgácio responde prontamente:

O meu nome é Lucreciano Buonaventura, venho do Cáucaso e estou de passagem por Constantinopla. Sou botanista.

Intrigado pela concisão e detalhe da resposta, Vulvinni insiste:

Botanista, hein? Do Cáucaso? Interessante. E um xadrezista também, diga-me: onde pretende jogar e contra quem?

— Obrigado, Exmo. Marquei dois duelos — infelizmente, sem me aperceber, para exactamente a mesma hora. Presumo que terei de realizar uma múltipla.

Pois bem — diz Vulvinni, acrescentando: Desafios incomuns nos meus tabuleiros são apenas realizados na minha presença. Assim, de múltipla com dois tabuleiros contra os seus amigos... sugiro tornar as coisas mais interessantes: também eu farei parte!

Esfregando as mãos, meio nervoso, acrescenta:

Preparemos então três tabuleiros, aqui no lado sul do pátio. Ainda haverá luz a esta hora e podereis assim jogar com os vossos oponentes tranquilamente — e em simultâneo comigo — numa tripla!

Salgácio (agora Lucreciano) atravessa o pátio e segue calmamente atrás de Vulvinni em direcção aos tabuleiros.

Durante esse breve percurso, vislumbra perifericamente, debruçado sobre um tabuleiro, algures no fundo do átrio, um personagem intrigante, observando cuidadosamente uma posição de xadrez que estuda sozinho. Este personagem enverga uma túnica negra como breu, com capuz pontiagudo que cobre completamente a cabeça e o rosto, permitindo apenas vislumbrar o brilho magnético de dois olhos vermelhos de pupila vertical. Sob a túnica, botas pontiagudas de cossaco, com berloques dourados.

Vulvinni, apercebendo-se da inquietação e curiosidade causada por esta presença, sussurra:

Permita-me apresentar-lhe o Embaixador Plenipotenciário Bulgakov, um dos nossos melhores jogadores aqui no Hipódromo. Nunca — ninguém — jamais conseguiu sequer empatar uma partida de xadrez com o Embaixador Bulgakov, muito menos vencê-lo. Nem inebriado, nem após dias sem dormir, nem à chuva, de dia ou de noite — o Embaixador é implacável, e joga a um nível estratosférico.

Vulvinni cumpre uma exagerada genuflexão diante do Embaixador que interpela nervosamente:

Caríssimo Embaixador, permita-me incomodá-lo. É com honra que lhe apresento o jovem Lucreciano, um botanista do Cáucaso.

O Embaixador interrompe a sua análise, levanta levemente o capuz e olha fixamente para Salgácio. Nesse exacto momento, o coração de Salgácio dispara. Os seus músculos intercostais contraem-se abruptamente. Sente o sangue gelar nas veias. Fica imóvel. Sem qualquer reacção. Petrificado como uma estátua carbonizada pelo Vesúvio em Pompeia.

O Embaixador Plenipotenciário Bulgakov revela-se um gato — enorme, preto, de olhos vermelhos, vestindo trajes aristocráticos, falando num turco-assírio fluente, com um olhar penetrante e uma presença quase etérea.

Este, apercebendo-se do efeito causado, pausadamente, interpela os seus interlocutores:

Com enormíssima honra, Exmos., o prazer é todo meu. Um botanista... que sabe jogar xadrez? Interessante. Preparemos então quatro tabuleiros. Desafio-vos para uma quádrupla!

Charles d’Anjou e Josephius Eduardius chegam à hora combinada, dirigem-se ao pátio onde se encontram os nossos protagonistas e iniciam as partidas de xadrez, em silêncio.

Quatro tabuleiros, dispostos em fila. Virados a sul, onde estão sentados: Salgácio (agora Lucreciano), Charles, Josephius e Vulvini. O Embaixador Plenipotenciário Bulgakov percorre os tabuleiros sequencialmente — jogada após jogada — com a precisão de um metrónomo.

Passados trinta minutos, o Embaixador interrompe o silêncio com desdém aristocrático:

Estes jogos estão aborrecidos. Três cheque-mates em menos de vinte jogadas, quase todos ainda na abertura.
Apenas o nosso botanista apresenta algum desafio. O seu estilo é... original. Concedo que precisarei de mais três ou quatro jogadas para infligir o inevitável coup-de-grâce. Sugiro, pois, uma fumaça — de pulmões cheios, caro Lucreciano — antes de continuarmos.

Salgácio (agora Lucreciano) interpreta esta sugestão de forma imperativa. Evitando contradizer o Embaixador Plenipotenciário, enche lentamente os pulmões, tragando uma longa fumaca da narguilé, carregada de maçã-canela.

Ora — no momento exacto em que os seus pulmões se encontram repletos, no auge da inalação, Bulgakov ergue a pata direita e, apontando uma das suas unhas distendidas na direcção de Salgácio, profere solenemente:

Давайте, поехали!
(Nota do tradutor: “Está na hora!”)

Neste preciso instante, uma fractura espaciotemporal rasga a narrativa. Como um véu negro e gelado, uma cortina de fumo fulminante congela o tempo e o espaço onde este episódio se desenrola.

O som extingue-se. O ar imobiliza-se. As peças de xadrez flutuam ligeiramente acima do tabuleiro.

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