#10 Gambito de Gallis, Constantinopla, 27 de Maio, 1271
O Embaixador Plenipotenciário Bulgakov olha directamente para Salgácio (agora Vladimir) e diz novamente, numa voz sibilante, arrastando os r’s e os z’s como qualquer russófilo nato: — Bispo para D4?... é a sua vez, Lucreciano — arrastando a peça lentamente com uma das unhas superafiadas da sua pata direita. Salgácio, confuso e assustado com o intrusivo atrevimento do Embaixador, colocando frases na sua cabeça, sem conseguir descortinar e entender ainda o que se passa, mantém a postura, no entanto, a qualidade do seu xadrez deteriora-se abruptamente e a inevitável derrota surge assim 2 minutos mais tarde com um fork incrível do gato ameaçando uma torre e um bispo em simultâneo com um dos seus cavalos. Era absolutamente inútil prosseguir esta partida, a qual Salgácio abandona com uma resignada desistência, dando um piparote no seu próprio rei.
Bulgakov despede-se aristocraticamente dos seus oponentes após as partidas - “Cumprimentos, Excelências, um prazer, e em especial ao nosso jovem Botanista, faço votos de que desfrute dma excelente estadia em Constantinopla, caso necessite de apoio, contactos ou tenha qualquer outro assunto que queira discutir, o Exmo. Vulvinni poderá decerto estender-lhe a cortesia e oferecer-lhe acomodação" - voltando-se para Vulvinni e agora de forma um pouco mais imperativa: "Estamos entendidos?" - Vulvinni di Gallis presta uma nova cerimoniosa vénia acenando afirmativamente o seu chapéu de abas com vigor.
O Embaixador remata, dirigindo-se aos quatro: “Seria inoportuno não vos conceder a oportunidade dum quid pro quo; proponho assim, Sábado à mesma hora, em Hagia Sophia, outra quadrúpula para finalizar as nossas partidas.”.
Josephus Eduardius e Charles continuam a jogar xadrez, tendo iniciado uma nova partida a dois após a pesada derrota com o Embaixador. Vulvinni senta-se na cadeira deixada vaga por Bulgakov, olhando atentamente para algumas peças que pareciam flutuar acima do tabuleiro apos a saida do gato.
- Straordinario, questo Ambasciatore, però "Lucreciano" dove ha preso questo cognome?
Surpreso, Vladimir (agora Lucreciano), tentando ainda manter o decoro e a sua nova identidade:
- Perdone Signore?
Segundo os registos onomásticos da Chiesa de La Maddona na província de Lucca, Vulvinni di Gallis nasce na década de 1240, filho duma mercadora de arenque de seu nome Valgénia Surcamille e de um cigano vidente, conhecido nos meios alfandegários como Turbolino di Lucca, ambos membros da mutual agropecuária de Liguria onde militam desde jovens pela reforma agrária da Província de Genova. Vulvinni cresce num ambiente de militância revolucionária e abraça incondicionalmente os ensinamentos proto-fascistas de Tommazo de La Boquina, apontando algumas notas sufragistas de invulgar futurismo, atento ao papel secundário ao qual a grande maioria das mulheres eram infelizmente relegadas nesta Época.
Note-se que os fasci eram, na sua génese, bem mais panfletários e liberais que a sua infeliz apropriação pelos movimentos nacional-socialistas modernos que os iriam tornar numa abjecção profunda originaria do fascismo. Ora, os <<fasci>> medievais eram documentos de imenso modernismo, e foi exactamente por esta via que amadureceu a pena do nosso Vulvinni, intoxicado pela aura revolucionária do Reino das 9 Sicílias em ebulição agro-política e igualmente obcecado com genitália feminina, consagrando-se como um cunilinguista de primeira categoria e um dos primeiros teóricos deste latinismo. Destacam-se os seus "Odes minetais dum Minotauro" e um conjunto inacabado de minuetes musicais entitulado "Cunilingus musicallis esotérico" com um prefácio de Cornelius Cortázar, um contratenor originário da ilha de Creta.
A sua actividade ensaística e revolucionária não passa despercebida às altas esferas da Sociedade tri-Testikularis, tendo um plebiscito secreto interno tomado a decisão de acolher Vulvinni como sub-seKretário. O trabalho desenvolvido por Vulvinni nos primeiros anos é de tal forma vanguardista que rapidamente alcança o grau de Komissário um cargo que desempenha com zelo no decurso das próximas décadas. No entanto, cedo começam a emergir algumas fracturas atendendo ao facto de nenhuma mulher ser admitida na Sphera Regia, mas apenas em cargos de patente organizativa, logística e contabilística.
A grande maioria dos cargos de maior importância no seio da Sociedade tinham sempre sido ocupados por mulheres, mas na Sphera Regia — o órgão maximus — só homens com um invulgar número de testículos poderiam ser aceites.
É nesta altura que Vulvinni tenta subverter a Carta de Princípios, militando por igualdade, criando uma delegação sindical no seio da Sociedade, à qual atribui o nome de Delegatio tetra-Klitoriadis, conferindo direitos igualitários equivalentes a qualquer membro da Sphera Vaginalis, que tentava agora estabelecer-se à margem da ortodoxia interna, dos Sumos Embaixadores e do próprio Embaixador Plenipotenciário.
Ora é nesta fase de intenso desacordo sindical que Bulgakov decide castigar Vulvinni exilando-o num Gulag durante uns tempos de modo a limar <<certas arestas psico-processuais>>. O objectivo era submergir Vulvinni num ambiente fétido, coalhado de invejas mesquinhas, boçalidade militante, podridão institucional, miséria de espírito e zoilismo torpe — com laivos de demência clerical e um gosto particular por sufocar qualquer centelha de inteligência — um Gulag tão estéril e nefasto que faria definhar até a mais robusta vocação sindical ou literária. Em suma, uma espécie de campo de reeducação mental, onde se ensinava o servilismo como virtude, a mediocridade como critério, e a obediência como arte superior da sobrevivência.
Esse Gulag seria a cidade de Lisboa, em Portugal, em particular os seus círculos intelectuais, académicos e jornalísticos circunscritos ao vortex Bermudal delimitado pelo Chiado, Academia de Ciências e a Escola de Belas Artes. Acidentalmente, devido a um curto-circuito no portal relativista da Sociedade, Vulvinni atravessa o contínuo espaço-temporal chegando a Lisboa no fin-du-XIXème - e não no início do segundo milénio como inicialmente planeado - onde incorpora um guarda-marinha do arsenal e primeiro-secretário da mesa da assembleia geral do banco popular Independência, dedicando-se com zelo à actividade literária nos seus tempos livres sob a pena de “Gallis”.
Vulvinni, tacteando as peças de xadrez, flutuando sobre o tabuleiro, admite:
- Lucreciano é dos nomes mais interessantes que passaram pelos nossos códici.
Atónito, Salgácio (agora Lucreciano, outrora Vladimir) rendido pergunta:
- mas como? Você também? Mas isto é mesmo real e não uma trip alucinogénica?
- Não, não, isto é comum, o Embaixador trouxe-o do futuro, certo? Deixe-me adivinhar, algures pós-milénio?
- ...sim, 2017...
- Sabe, em tempos eu também fui um emissário d’a Sociedade, bons tempos…
Agora, com nostálgica tristeza limita-se a olhar fundo no horizonte, enquanto tacteia um dos bispos flutuando sobre o tabuleiro após a despedida do gato.
- Sim, fui enviado, e cheguei em 1886 a Lisboa, quando a calibração falhou, por alguns milímetros apenas, perdemos 120 anos... e encarnei Joaquim Alfredo Gallis.
- Joaquim Gallis? E o que fez por lá?
- Como Joaquim Gallis, trabalhava num banco e escrevia sonetos no tempo-livre, de modo a poder seduzir algumas damas na alta-sociedade lisboeta. No início a minha actividade era inocente e o âmbito dos meus textos, algo provocativo.
Encolhendo os ombros e rindo, enquanto coloca o indicador sobre a cabeca da rainha que flutuava no canto inferior do tabuleiro.... continua:
- Digamos que a minha pena afligia muitos detractores mantendo, no entanto, um estranho encanto perante o contingente mais liberal. O meu passado sindical elevava as damas daquele tempo outorgando-lhes agência, autonomia e, claro está, arbítrio. Incluindo nos prazeres e na luxúria, algo para o qual aquela sociedade retrógrada ainda não estava preparada. Assim, de suposto exílio penal num Gulag qual aventura homérica num Portugal finissecular borbulhando de ideias e criatividade!
Visivelmente comovido, de nostalgia, Vulvini (outrora Joaquim Gallis) prossegue com invulgar eloquencia:
- os almoços com o Fialho ao Nicola, onde anotávamos ideias em guardanapos brancos, as desgarradas com o Cesário nas tabernas da Serafina, enfim, até cartas do Eça exilado por terras faraónicas e notas do Mestre eu recebi, trago algumas sempre comigo na lapela do meu sobretudo, sobreviveram chamuscadas ao portal, é o meu tesouro mais precioso…
Acrescentando com fulgor e alguma agitação:
- havia por lá um epistológrafo de nome Cabral, que ameaçou defenestrar-me do Elevador de Santa Justa se eu não partilhasse com ele o meu acervo, mas absteve-se de ideias quando lhe fiz sentir no probóscide a verve da minha indignação. Perdeu alguns dentes, o energúmeno, e apenas uma nota breve conseguiu surripiar-me, copiando de soslaio esta que lhe mostro, ao retirar da sua lapela uma notinha chamuscada escrita em papel de arminho antigo:
Prezado e Il.mo Quim,
Burilei um florilégio gadelhudo, aveludei-o de nudezas e traído por uma das tuas licorosas metáforas dei com as cruzes no cárcere.
Envia duriões.
O teu fiel amigo,
Camillo,
Cadeia da Relação do Porto
Vladimir, atónito, pergunta:
- do Mestre? - E há outros exemplares?
- Dezenas, tenho um baú cheio. Bem nesta fase, o Embaixador desconfiava de que algo não estava bem e que o castigo oficializado pudesse ter com efeito degenerado em algo de trágico - eu poderia estar a disfrutar do meu exílio fingindo atravessar um dos aneis do purgatório de Dante quando na realidade qual gloriosa experiência! - então conjurou uma metáfora enferma que enviou pelo portal.
- uma metáfora? Ele enviou-lhe uma metáfora?
- Sim, muito comum, conjuras gramaticais, a Sociedade tem uma forte tradição nesta matéria, sucede que esta metáfora hiper-temporal contraiu uma vaginose bacteriana no Rio Tejo ao chegar a Lisboa e alterou radicalmente a minha pena.
- Mas como - adoeceu?
- Sim, a metáfora, coitadinha, andava a banhos e anti-inflamatórios, - eu comecei por descrever as partes pudendas duma viúva como <<abismo de trama dourada onde florescia o nácar e gotejavam aljófares>> e no auge da conjura relatei uma genitália madura como <<negra relva, lustrosa e espessa que se emanharava em deliciosos caracolinhos, tapetando todas as margens da gruta de Calipso>>, entre muitas outras comparações- ora este vanguardismo venéreo até então relegado para as cavalariças e ermos escondidos foi legitimado em folhetim. Esta torrente catapultou o meu nome nos hodiendos lavabos da plebe, como auteur dum novo estilo até então inexistente, fui brutalmente ostracizado do cénacle e nem na minha campa, um epitáfiozinho pífio me concederam, segundo constará.
- E os seus amigos, o que fizeram?
- Esses sempre estiveram comigo, o Fialho enviou-me uma carta da farmácia:
Caro Quim,
Em Lisboa, a sociedade dirigente é uma sociedade de conselheiros, de pares do reino e de cabrões. Todo o português de categoria é alguma coisa destas, largamente para, com os seus conselhos, inspeções, paresias e cabroagens, fazer as deliberações dos governantes cada vez mais estultas, as inspeções cada vez mais falcatruadas, as sessões parlamentares cada vez mais vergonhosas, e os Esganarelos cada vez mais chavelhudos!
Envio-te cremes para o hemorroidal e duas sanguessugas para te purgares dessa metáfora meretrícia!
O teu amigo,
Fialho de Almeida,
Praça Velha
Prossegue Vulvinni, enquanto agora segura um dos bispos, vibrando nervosamente como um besouro, como que amplificando a sua indignacão:
- Mas naquele triangulozinho isomorfo e disfuncional, naquele Gulag ideológico e desinspirado, o meu caso não foi excepção, mas regra, por exemplo <<Zoilos..!>> profetizava Barbosa du Bocage, 100 anos antes do Fialho - no período da vigésima segunda Margarida - em Portugal nada tinha mudado e a posteridade era mesmo dele - acho que se poderiam copiar páginas inteiras das ”Farpas”, ou mesmo outra carta de Paris, leia esta:
Meu prezado e ilustríssimo Joaquim Gallis,
Peço vénia para ocupar algumas linhas do seu precioso tempo — esse bem cada vez mais raro entre os homens de espírito, que o desperdiçam, não com estudo ou meditação, mas com frivolidades modernas, como quem troca um tratado de Cícero por um panfleto de anúncios.
Não sei se Vossa Excelência partilha desta melancolia que me assalta ao contemplar a sociedade hodierna — essa turba ruidosa e cintilante, onde o verniz substituiu a substância, e onde as letras, outrora cultuadas como sacerdócio, se converteram num ornamento de feira delimitado a 140 caracteres. A educação, que em tempos foi arte de formar o espírito, é hoje um artifício de decorar o ego. Os salões — outrora lugares de tertúlia e inteligência — são agora palcos para o exibicionismo do ignorante com opinião.
E cumpre-me, aliás, reconhecer — com uma pontinha de inveja estética, se mo permite — que há, uma coragem quase sublime no modo como se atreve a domesticar o escândalo. As suas metáforas venéreas, antes relegadas ao subsolo da linguagem ou ao rodapé das confissões, irrompem agora com brio e desassombro, como bacantes modernas dançando sobre as páginas. Há nelas uma energia crua, uma volúpia linguística que, não raras vezes, suplanta a própria ideia de decoro e eleva o vulgar à condição de arte. Se por vezes pecam por excesso, pecam com estilo — e quem, entre nós, poderá condenar uma ousadia que aspira à eternidade através da carne das palavras?
Por isso, querido amigo, aprecie apenas a tragicomédia que nos calhou, a nós talentos exilados — no espaço e no tempo — pois seremos póstumos. Está aí a triste ironia desta fogueirazinha pátria: hoje proscrito, preso ou exilado, amanhã laudado, reconhecido e amado.
Eu, porém, consolo-me com a ideia — talvez ingénua, talvez teimosa — de que a mediocridade, por mais que se multiplique e se instale como mobília do espírito nacional, nunca triunfa em definitivo. Há sempre, num canto obscuro, um desses espiritos modestos escrevendo em silêncio a página luminosa, revelando — entre a poeira das nulidades — um talento anónimo e invulgar, como quem acende uma lamparina num salão em ruínas.
Com os protestos da mais elevada consideração, subscrevo-me,
De Vossa Excelência, humilde e fiel servidor,
Eça de Queiroz,
Avenue Charles de Gaulle in Neuilly-sur-Seine, Paris
Visivelmente comovido com as palavras de Eça, Fialho e Camillo coloca a mão sobre as peças flutuando sobre o tabueiro apos a saida do gato, rematando:
- Assim, cumprida a minha “sentença”, a humilhação perdurou no regresso penitente, afastado das lides literárias e relegado para tabuleiros de xadrez. O meu gambito não resultou, perdi a partida - o Embaixador venceu, e presumo que o seu xadrez milenar seja imbatível desde os idos da primeira Margarida, no século IX. Agora ele exige que me junte ao Colégio dos Cardeais, assumindo uma nova identidade como espião canónico, pois julga ser essa a única forma de obter informação capaz de reverter o codici supremmus da Sociedade — serei, com efeito, Teobaldo Visconti: de modesto sindicalista piemontês a pornófilo lusitano, terminando como Sua Santidade — um percurso pouco original.
Após a conversa com Vulvinni (outrora Joaquim, em breve Teobaldo), Lucreciano (outrora Salgácio, agora Vladimir) constata ter o livro de receitas chamuscado, mas ainda intacto no bolso do seu casaco, apesar da fractura espaciotemporal — incluindo o seu delicioso polvo à lagareiro (em cirílico) e as suas notas árabes — e, após micção táctica atrás de um fontanário, a triste constatação da sua diminuída masculinidade, reduzida agora a dois triviais tomatinhos. No entanto, sente um redobrado interesse pela sua nova encarnação. As saudades da sua bielorrussa manifestam-se agora, com pesar: os carinhos, as massagens... Será que a poderia rever? Ou seria este mais um pérfido exílio outorgado por incumprimento?