#11 Interjectione Georgianensi, Tbilíssi, 4 de Julho 2017

"Devo ter exagerado nos ingredientes — isto nunca aconteceu!"

"Pas une partouze, Esmeralda! Isto era um bruxedo subtil, só para lhe fazer companhia. Vladimir, où est-il ?!"

O apóstrofo de bigodes, que se encontrava a ser massajado no duche, responde:

"Sim, estava aqui um senhor de ceroulas - nós oferecemos-lhe uma massagem tântrica, mas ele fugiu!"

"Mas alguém te perguntou alguma coisa?! Esmeralda, je t’en prie — trata disto. TRA-TA-DIS-TO!"

Esmeralda, tentando agora acalmar a situação, afasta cordialmente o manual de semiótica em discussão com o asterismo arcaico e senta-se no otomano:

"Caaaaalma — eles só aparecem por onde ele tenha estado. Se os seguirmos, apanhamo-lo!"

"Bruxas doutoradas.!?." - desabafa Margarida olhando para Esmeralda - "um sapo com dentes, uma abóbora com rodas — trivial - tinha de ser bem mais compliqué... n’est-ce pas? E aqui o bigodaças?"

"Relax, s'il te plait Margarida, esses desvanecem, eles desaparecem a seu tempo."

As quatro decidem aguardar pela madrugada após a comoção, pois, de acordo com o apóstrofo de bigodes, Vladimir tinha saído havia horas, e seria infrutífero caminhar por Istambul a meio da noite. Assim, talvez usando a sua rede de contactos e espiões, fosse possível retraçar os seus passos. Esperaram pela madrugada antes de prosseguir.

Entretanto, Salgácio (agora Vladimir), em fuga, já se encontrava às portas do Mercado de Especiarias. Conseguira escapar às autoridades, escondendo-se numa cave, onde procurava retomar algum controlo sobre os acontecimentos apocalípticos que o haviam afligido nas últimas horas — seria tudo isto um pesadelo?

No bolso das ceroulas encontra umas notas manuscritas, em árabe: uma correspondência algo básica entre algumas letras e locais geográficos em Istambul — palavra que agora reconhecia, mas sabia tratar-se de Constantinopla. Havia também notas dispersas aludindo a códigos de decifração, e uma carta geográfica detalhada de uma região que identificava como o Cáucaso Meridional. A única centelha de lógica explicativa, só poderia provir dessa região.

Partia. E já.

As quatro saem de manhã, num périplo bizantino, determinadas a encontrar Vladimir. Começam pelo mercado, ainda ao romper do dia, onde interpelam um vendedor de açafrão:

"Exmo., por acaso testemunhou algo de incomum nas últimas horas? Procuramos um indivíduo…" — pergunta Margarida, inclinando-se ligeiramente sobre o balcão de madeira, com um olhar intenso, enquanto segura discretamente a manga da túnica para não tocar nas frutas em exposição.

"E que tal descrever o indivíduo? Isso talvez fosse útil." — responde o vendedor, erguendo uma sobrancelha com desconfiança e cruzando os braços sobre o avental manchado de açafrão.

"Bem… isto pode parecer um pouco anormal, mas trata-se dum homem de meia-idade, semi-nu, correndo e gritando…" — diz Margarida, encolhendo os ombros, com um leve tom de embaraço na voz.

"Malucos de ceroulas, aos gritos e a correr pela rua, não são propriamente raros em Istambul." — responde o vendedor, suspirando e apontando com a cabeça para o fim da rua. — "Algum detalhe mais específico?"

"Bem, ele…" — começa Esmeralda, franzindo a testa, mas antes que pudesse continuar, o vendedor ergue um dedo, interrompendo-a.

"Esperem, por acaso algo de estranho aconteceu — parece que o café do Mehmet foi assaltado ontem à noite." — diz ele, coçando o queixo com os dedos manchados de resina.

"Agora pedimos-lhe perdão," — diz Ileana, inclinando ligeiramente a cabeça, enquanto alisa a bainha da sua túnica com gesto nervoso — Iryna remata, com um meio sorriso: "Mas assaltos em Istambul não são propriamente novidade…"

"Sim, mas este assalto foi perpetrado por duas hipérboles e um ponto final parágrafo!" — exclama o vendedor, abrindo os braços como se ainda não acreditasse no que testemunhara.

Esmeralda dá um passo em frente, os olhos acesos de súbita compreensão: "É ele. Tem de ser! Onde fica esse café?"

— "Atrás do mercado, na rua Izghut." — responde o vendedor, apontando por entre os toldos.

"Muito obrigado!" — diz Margarida, começando a correr, seguida pelas companheiras, as túnicas esvoaçando atrás delas enquanto se embrenham pelas ruelas do bazar.

Chegando ao café, encontram um comerciante imperturbável e sereno, prestando declarações à Polícia Municipal. As protagonistas aproximam-se, escondendo-se nas túnicas, e escutam atentamente as declarações:

“Eram cerca de cinco ou seis da tarde, não posso precisar.” — diz o comerciante, coçando o couro cabeludo com a unha do polegar, o olhar fixo num ponto indeterminado do chão de ladrilhos gastos.

“E o que sucedeu?” — pergunta o inspector, tirando notas num bloco já bastante amarrotado, a caneta rangendo ligeiramente.

“Bem…” — o homem encolhe os ombros, suspira, e cruza os braços. — “Eu estava a servir uma rodada de narguilés, quando duas hipérboles entraram silenciosamente pela porta. No início, tudo parecia tranquilo — pediram um chá turco com amêndoas e sentaram-se ali, naquela mesa no canto.” — aponta com o queixo para uma mesa tombada, ainda com duas almofadas fora do lugar - Depois, passados uns minutos, um tipo de ceroulas entrou pela porta, discutindo com um ponto final parágrafo — branco, em fonte Glubby, enorme.” — balança a cabeça, incrédulo.

“Pode descrever o indivíduo?” — o inspector ergue os olhos, franzindo o sobrolho.

“Sim, meia-idade, cabelos castanhos, muito nervoso.” — o comerciante gesticula como se desenhasse o vulto no ar. — “Gritava numa língua estranha, mas por vezes dizia algo em georgiano, que eu entendo — a minha mulher vem da região de Nagorno-Karabakh.” — sorri brevemente, como quem tenta aliviar a tensão.

“O ponto final parágrafo emitia uns grunhidos, e os dois pareciam discutir calorosamente.”

— “E o que sucedeu depois?” — o inspector faz uma pausa na escrita e ergue uma sobrancelha.

“A discussão serviu de distração.” — diz o homem, levantando o indicador. — “As hipérboles sacaram de dois sabres otomanos e começaram a ameaçar os clientes.” — faz um gesto largo com os braços, como se refizesse o pânico. — “Foi então que se instalou a maior confusão. Roubaram tudo o que puderam — moedas, relógios, jóias — e fugiram correndo pela rua Esmhil acima.

“O homem das ceroulas ainda tentou agarrá-las, mas claramente não fazia parte do gangue.”

“Tem a certeza de que ele não estava envolvido?” — pergunta o inspector, recostando-se ligeiramente, com um tom de dúvida.

“Absoluta.” — o comerciante levanta as mãos como quem se exime de culpas. — “Não era daqui, percebia-se logo. Sabe, anda por aí um gangue de antíteses, mas essas já conhecemos bem — quando aparecem, avisamos logo a polícia.” — faz um gesto com a cabeça, como se fosse coisa banal. — “Mas hipérboles? Nunca tivemos problemas com elas.”

— O comerciante suspira e passa a mão pela testa suada.

“Isto está a ficar perigoso. Istambul já não é o que era. Antigamente os assaltos eram raros...

“E o homem?” — insiste o inspector.

“Coitado.” — diz, agora num tom mais brando, com um olhar ausente. — “Tentou impedir o roubo, mas não conseguiu. E no fim, fugiu também — com medo de ser preso por indecência na via pública.” — olha em volta, como se temesse que o ouvissem. — “Vai-se a ver, e era só mais um botanista a delirar.”

As quatro decidem alargar o raio da investigação. Com efeito, tinham um atraso de cerca de doze horas em relação a Vladimir, e à velocidade a que este se deslocava, estariam certamente ao seu alcance. Decidem, assim, trotear por Istambul em círculos concêntricos de raio crescente, varrendo todos os ângulos da cidade.

No decurso das suas investigações, deparam-se com relatos de uma perífrase nadando mariposa num lago; duas metonímias regateando astrolábios com um parágrafo inacabado; e alguns episódios de violência gramatical extrema — como, por exemplo, uma cáfila de notas de rodapé armadas de bastões que haviam vandalizado uma antologia poética na margem sul da ponte Ikzillion, e dois apóstrofos detidos enquanto tentavam abrir uma brecha num pretérito mais-que-perfeito, com o auxílio de um pleonasmo armado de shurikens japoneses.

Por onde Salgácio passasse, estes acidentes estilísticos agravavam-se. No entanto, as pistas apontavam inevitavelmente para o Mercado de Especiarias, onde as protagonistas chegam passadas algumas horas, iniciando o périplo pela praça de táxis.

Um dos motoristas, exibindo um hirsuto bigode e camisa aberta até ao umbigo, visivelmente abalado, olhava para o chão abanando a cabeça. Sobre o capô do seu táxi, uma enorme aliteração fumava um charuto que erguia com uma mãozinha azul enluvada.

"De onde veio?" — perguntam, aproximando-se com cautela, enquanto a aliteração no tejadilho do táxi exalava nuvens densas de charuto azul. O motorista, de bigode hirsuto e camisa aberta até ao umbigo, encolhe os ombros com um suspiro resignado.

"Not guud... from airport. Crazy man, dropped this on my taxi." — aponta para o capô com a cabeça, onde jaz um envelope amarrotado com símbolos cabalísticos a lápis.

"Mas o que lhe disse?" — insiste Margarida, arqueando uma sobrancelha, já em alerta.

— "Asked about Tbilissi, etc. Crazy. I mean ke-razy man!" — responde, arregalando os olhos e rodando o dedo junto à têmpora, numa mímica universal.

No Aeroporto de Atatürk, uma comoção inacreditável: um grupo de travessões, liderado por um insurgente homónimo, protagonizava um motim no Terminal J, recusando-se a ser apenas um sinal de diálogo e exigindo uma revisão ontológica do seu papel nos romances modernistas. Caos. As nossas protagonistas, passam despercebidas pela zona de embarque e apanham o primeiro voo em direcção a Tbilissi, na Geórgia. À chegada, cerca de seis horas mais tarde, tomam conhecimento do famoso Festival Georgiano de Interjeições, para onde se dirigem de comboio.

Ao chegar ao Festival, deparam-se acidentalmente com um manifesto intitulado “Sobre a Função Sagrada do Parêntesis na Retórica Eclesiástica” — contendo um mapa disfarçado sem pontuação, sendo vendido por um coelho chamado “Ohleoc” - um claro sinal palindrómico. Nesta zona da feira, tudo é escrito da frente para trás, monges discutiam em quiasmos e sinédoques e um homem misterioso, falando em palíndromos, revela às nossas protagonistas que tinha entregue a um individuo conversando com uma trema austriaca, um códice selado intitulado ”Gaspé! Poulpe top pop, Epoulpés, Ag!" de subtitulo: Un thriller palindromique de la gastronomie poulpesque, escrito em franco-georgiano invertido. Lê-lo de trás para a frente poderia revelar acontecimentos que ainda não sucederam — incluindo o colapso da ponte entre Tbilissi e Constantinopla!

Vinte e quatro horas após o início da perseguição — seguindo as pistas deixadas por Salgácio — finalmente descobrem-no numa taberna em Tbilissi, acompanhado dum caracol estalinista com uma pós-graduação em Hermenêutica e duma trema disfarçada, vestindo bermudas de couro decoradas com bordados austríacos e suspensórios sobre uma blusa branca de algodão. Estes discutem acaloradamente sobre as idiossincracias do alfabeto Georgiano. Ao entrar pela taberna as nossas protagonistas são interpeladas por Salgácio (agora Vladimir) espantado: - "Caríssimas, quão bom é tornar a contemplar-vos! Quereis vós um trago de vinho da terra de Kartli?"

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