#9 “Sociedade tri-Testikularis”, Istambul, Junho de 2017
Salgácio recupera os sentidos, prostrado sobre o tapete persa, incorporando agora um indivíduo estranhamente familiar, estonteado pela fracturante experiência transcorporal que havia protagonizado há dois capítulos atrás.
Abre os olhos, perscrutando o ambiente evitando sequer respirar, e tacteando lentamente as suas ceroulas com a mão direita, constata com alívio que cobriam condignamente as suas partes pudendas.
— Talvez tenha sido apenas um pesadelo — indaga para consigo. — Certo, certo, vou acordar brevemente, terei apenas de esperar uns momentos.
E ali permanece, imóvel. Horas? Minutos? Segundos intermináveis, arrastado-se pelo batido pendular do relógio de parede, cujo ritmo ele sentia pulsar cronometricamente — tik, tak, tik, tak — e nada, mesmo nada acontece. Conclui assim que só poderia estar acordado. Mas onde? Quando? Como? Porquê? E há quanto tempo?
?
Um gigantesco sinal gramatical surge agora flutuando no ar à sua frente, em cima da sua cabeça. Um enorme ponto de interrogação, branco, redondo, na fonte tipográfica Glubby, com dois metros de altura e gordo, em formato bold, pairava sobre o seu corpo, oscilando ao ritmo do relógio de parede e tocando levemente no tecto esconso da cave.
Salgácio fecha novamente os olhos, aterrorizado, pensando:
— Espera, espera... Isto é mesmo um pesadelo. Deixa-o sair daqui. Isto vai passar...
Mas nada acontecia. O ritmo pendular dos ponteiros era agora acompanhado pelas cabeçadas do ponto de interrogação no tecto — thump, thump — repercutindo-se em fase com o relógio de parede: tik, thump, tak, thump, tik, thump...
O pânico instala-se, e Salgácio fecha os olhos novamente, rezando para que o pesadelo termine:
— Deus meu, misericórdia, clemência, por favor! — pensa Salgácio, de olhos fechados, vertendo lágrimas de pânico visceral.
O tik-thump-tak..., ainda audível, reduz-se em intensidade e o ponto de interrogação inclina-se ligeiramente na sua direcção, curvando-se numa vénia e projectando uma mãozinha azul enluvada que aponta para um envelope branco sobre o otomano encostado a um dos cantos da cave.
Salgácio arrasta-se lentamente no chão, evitando perturbar o ponto de interrogação, e abre a carta escrita em Latim e Francês, na qual lê o seguinte:
Mon Cher Vladimir,
Pedimos desculpa mas tivemos de observar l‘audition, não esperávamos o resultado e terás de ficar sequestrée umas horas na loja ate podermos resoudre la situation, com efeito <<surprese bombastique>> não descreve o que encontrámos no recheio das tuas ceroulas; la situation est trop serieuse, urge agora uma reunião do "Concílio tri-Testikularis" pois presumimos que a tua sentença será outorgada pelas mais altas esferas da nossa Sociedade; assim, para que possas comprendre o evenement, deixamos-te um manuelle descrevendo a nossa "Chartre des Principes" que esperamos possas ler enquanto aguardas o nosso veredicto. As gêmeas deixaram-te água, cerveja, um cesto com fruta fresca, toalhetes, convites para o teatro, dispositivos intra-uterinos, rosas e bon-bons que trouxeram do mercado e tens tambem o otomano onde poderás descansar. Para te refrescares, há uma portinha de accesso ao banheiro onde te deixámos uma muda de roupa. A Esmeralda lançou um bruxedo gramatical para te ajudar caso tenhas qualquer necessidade até à nossa chegada.
Nous t’embrassons affectueusement,
La Secretaire de La Societe tri-Testikularis,
Margarida Sophie-Antoinette de Montmorency de Polignac-Ségur de la Roche-sur-Yon de Villeneuve-Lembron de Chateaubriand Beauharnais de Brissac de Saint-Évremond de la Vallière et Vichy.
Salgácio, agora sentado no otomano, de ceroulas, tenta reorganizar os seus pensamentos:
Primeira constatação — óbvia — a carta está dirigida a um tal de Vladimir; Segunda — o Latim da carta introduz certos sinais grafológicos incomuns e, sendo esta uma das suas linguagens nativas, tem dificuldade em identificar esta variação. Além disso, as frases interspersas em franco-provençal não fazem qualquer sentido, pois misturam termos da langue d’oc com expressões futuristas; Terceira — e os seus camaradas no jardim? Os jogos de xadrez? Os seus pertences, as suas roupas — desapareceram?; Quarta — o seu corpo parece-lhe familiar, mas como pode pertencer simultaneamente a um estranho?; Quinta — o único elemento realmente coerente nesta situação, descrevendo com precisão o seu estado de espírito e as últimas horas da sua vida, é o ponto de interrogação com uma mãozinha azul. Mas, sinceramente, após décadas de trabalho como copista, escrevinhando milhares destes sinais... porque só agora é que um lhe retribui a cortesia, prestando-lhe uma visita?
Salgácio decide beber uns tragos de cerveja, comendo algumas peças de fruta da cesta gentilmente colocada na mesa, e inicia a leitura da Carta de Princípios:
✠ A Carta Secreta da Venerável e Ilustre Ordem tri-Testikularis ✠
Fundada no Ano do Senhor de 777, na Estação da Lua Murcha
Prólogo: Seja dado a conhecer a todos os irmãos, irmãs, primos e bestas juramentadas ao tri-Testikularis, que esta Carta, redigida pela mão do Nosso Mais Esotérico Fundador — Teofílio, o Sinistríssimo — à luz de velas e sob vapores de absinto, permanece imutável até ao Fim dos Dias, ou até ser emendada por um quórum de não menos de dezassete membros e meio, somando um total de pelo menos 42 testículos.
Artigo Primeiro: Da Admissão...
Ora, neste preciso momento um ruído familiar vindo do cubículo anexo interrompe a sua leitura. Um ruído ritmado — tsch, splash, tsch, splash, tsch, — ocasionalmente interrompido pelo som de água a correr duma torneira.
!
Intrigado com o ruído, Salgácio pousa a carta no otomano, e rastejando de cócoras sob o ponto de interrogação empurra a porta do anexo devagarinho com o braço distendido evitando fazer qualquer barulho... lá dentro, um ponto de exclamação enorme, branco, redondo em fonte geneva bold, debruçado no lavatório, lava descontraídamente os dentes segurando a escova com uma mãozinha azul enluvada.
“Não, por favor, isto não pode ser possível!”
Pela madrugada, quatro vultos femininos enrobados em trajes cerimoniais dirigem-se pela avenida Bağdat em direcção à Praça Taksim caminhando em silêncio. Os vultos atravessam uma ruela íngreme que dá acesso ao boulevard İstiklal, vazio a esta hora e, apressando o passo em Eminönü, chegam ao Mercado das Especiarias, entrando na loja de duriões com cestos à porta.
Ao descer apressadamente pela escada em caracol, Margarida tropeça numa onomatopeia que a insulta de forma impronunciável. Evitando cair, apoia-se no varão central da escadaria, recuperando o equilíbrio e correndo de seguida em direcção à cave:
— "C’est quoi ce bordel?! Eeeeeesmeraldaaa — viens ici, vite!"
O ponto de interrogação discute acaloradamente com o ponto de exclamação no anexo, agitando furiosamente as suas duas mãozinhas azuis. No exíguo duche por detrás do lavatório, uma trema semi-nua espalha languidamente sabonete-em-pó nas costas dum apóstrofo de bigodes.
Sobre o otomano, um ponto-e-vírgula partilha o seu narguilé com umas aspas usando meias-de-liga, fio dental e nipple-tassles. Junto a eles, uma virgula despenteada ameaça violentamente um travessão que a tenta seduzir com um transferidor.
Por último, circunspecto e confuso, encostado a um canto, um asterismo arcaico (⁂), já em desuso neste período, reflecte sobre o significado da existência, partilhando a sua mágua com um manual de semiótica árabe.
Os símbolos ignoram completamente a entrada efusiva das nossas protagonistas.
— "Devo ter exagerado nos ingredientes - isto nunca aconteceu!"
— "C’etait pas une partouze, Esmeralda! Isto era um bruxedo-subtil, só para lhe fazer companhia."
E enfiando uma biqueirada na onomatopeia que agora lhe mordia os tornozelos, Margarida exclama:
"Vladimir, où est-il ?!"