#12 Fractura espacial: Constantinopla & Tbilíssi, 7 de Julho de 1271 & 2017
✠ A Carta Secreta da Venerável e Ilustre Ordem tri-Testikularis ✠
Fundada no Ano do Senhor de 777, na Estação da Lua Murcha
Artigo Séptimo: Da Liturgia do Eterno Retorno
Nos dias em que a névoa paira como véu de penitência sobre as colinas gémeas do mundo, os membros deverão observar fielmente o Rito do Silêncio Esmagado, no qual marcharão em círculo contra o curso das horas, ao redor de um relógio parado às 7:77, momento que não existe e, por isso mesmo, é eterno.
E quando Constantinopla sonhar com o cheiro das uvas de Kartli, e Tbilissi se lembrar das águas do Bósforo, então se cumprirá o Reflexo séptuplo - e o re-início dum novo ciclo.
O Sol descia devagar sobre Avlabari, espalhando ouro pelos telhados de cerâmica e cúpulas de cobre. Por baixo da Fortaleza de Narikala, sombras moviam-se por ruas tortas onde antenas parabólicas e pedras medievais conviviam como parentes que não se falam.
Vladimir (agora Salgácio) discutia animadamente com a trema austríaca sobre o invulgar mapa digital que Esmeralda projectava na parede: as ruas de Tbilissi em 1271. Os dados sugeriam uma lente temporal — localizada, contida. Como se o passado se inclinasse para sussurrar.
Um som estranho emergiu — dissonante, litúrgico, quase gregoriano. Margarida olhou para a rua através da janelinha de servico na qual via nitidamente o seu reflexo - usava uma túnica vermelha e segurava uma cestinha de duriões que depositava algures rodeada de flores e signos gramaticais dançando e celebrando.
O espaço curvou-se sobre si mesmo - os símbolos sob os pés de Margarida brilharam brevemente, desenhados a giz. Não por mãos conhecidas — mas que ela reconhecia. Como herança. E então, aconteceu — uma pressão subita, como o clique de uma lente. Um arrepio percorreu pedra e vidro.
E ali estava: uma cidade além da fractura, coroada de castelo, envolta em terracota e incenso: Constantinopla antiga. O ar da tarde elevava-se sobre os telhados de Fanar, dourando as cúpulas e cruzes da cidade murada. Abaixo da igreja de São Salvador, as vielas serpenteavam entre mármore, terra e murmúrios de mercadores. O Bósforo cintilava como uma lâmina líquida. Nos claustros de Blachernae, Salgácio (agora Vladimir) observava o reflexo da luz nos vitrais da catedral. O reflexo dobrava-se em três. Depois, quatro. Depois mil - mil vitrais imaginários rasgavam o espaço — e o tempo.
No alto da torre Nikos, soou o sino da séptima hora, e o som ecoou de forma irregular — como se tivesse batido noutro sino distante, noutra Época. Viu no brilho do metal um rosto que não era seu. Um homem medieval. Tinha uma barba, incunábulos e falava com uma trema austríaca.
À porta da Hagia Sophia, um cenário desconcertante — uma fila de homens segurando uma carta lacrada em vermelho com três estrelas, sendo entrevistados por um grupo de dignitários presidido pelo Embaixador Plenipotenciário Bulgakov. No átrio da catedral, um xadrez de jardim com peças enormes, cintilava com o brilho dos vitrais, irradiando o espaço com aquela intensidade policromática que artistas e fotógrafos tentam capturar ao escurecer.
Estes homens, calmos e serenos, aguardavam a audição da Sociedade, tendo sido convocados nos últimos meses para participar nesta cerimónia. Após confirmação da respectiva identidade, proveniência e reconciliação com o conteúdo da carta, era-lhes atribuído um envelope com um número apenas, com base no qual seriam organizadas múltiplas partidas de xadrez com o Embaixador, de modo a oficializar a admissão. A maioria dos candidatos aguardava no átrio segurando envelopes com os números '0' e '1'; e apenas um candidato com o número '3', encostado a uma coluna, sentindo o desconforto do seu predicamento e a singularidade do seu número.
Salgácio (agora Vladimir), Vulvinni, Charles e Josephius dirigem-se com cerimónia ao pátio de xadrez, onde se aguarda o início das partidas.
Neste momento, um velhinho de fraldas, corcunda, de cabelos brancos hirsutos, apoiando-se vagarosamente num andarilho, prossegue lentamente no meio da fila. Um dos sub-komissários aproxima-se prontamente:
— "Exmo., perdoe-me, mas esta fila é só para candidatos."
— "Candidatos? Amigo, eu não sei do que se trata, mas tenho aqui um envelope que recebi há meses, convocando-me para uma audição!"
Com efeito, a carta do velhote apresentava o distinto carimbo tri-circular da Sociedade. O sub-Komissário, visivelmente desapontado:
— "Peço-lhe desculpa, gentil Senhor, isto só pode ter sido um erro. Importa-se que abra a carta por favor?"
Ao abrir a carta do velhote, um envelope cai no chão com um número lacrado a vermelho em letras garrafais: ‘7’!
Absorto, o sub-Komissário olha para Bulgakov e, num gesto lento, mostra o conteúdo aos seKretários — exclamando:
— "Um Septimus!? Em Constantinopla?"
Ora — neste preciso momento, uma fractura espaciotemporal interrompe abruptamente esta narrativa. O número '7' fica suspenso no ar e o corpo do velhote, imóvel, com a mão prestes a ajustar as fraldas, é congelado no tempo. O céu, vibra em silêncio. No horizonte distante, o ar dança em espirais, ondulando como véus de névoa. Subitamente, o firmamento rasga-se como um manto puxado por dedos invisíveis, mãos cósmicas expondo o universo à respiração do mundo revelando — uma cidade gémea sobre colinas, com rio e fortalezas, estranhamente familiar - Tbilissi.
… hummmm …. delicioso sabor a duriões, espera ….!
Vladimir desperta sobressaltado na cama branca do hospital em Singapura:
— Querido Volodya! — exclama Ludmila, vertendo lágrimas de alegria.
— Ainda trôpego e balbuciando as palavras — as fracturas… as viagens… a Sociedade - o que foi isto ?!!?
— Por favor, tenta descansar agora — diz, beijando uma das suas mãos, que segura com carinho.
Vladimir, tentando erguer a cabeça da almofada:
— o quê! mas isto… foi tudo um sonho?
— Volodya, meu amor, estiveste semanas em coma… só agora despertaste. Descansa um pouco. Eu preciso de ti… nós precisamos de ti — diz, colocando a mão de Vladimir, gentilmente, sobre o seu ventre.
Vladimir não consegue conter as emoções e chora, abraçado a Ludmila, num pranto de felicidade e espanto.